A ampliação do protagonismo judicial na vida política brasileira, decorrente da mobilização da sociedade para exigir nos tribunais a concretização de direitos constitucionais e das ações interpostas contra decisões ilegais tomadas pelo Executivo, está provocando dois desdobramentos no funcionamento das instituições democráticas.
O primeiro desdobramento é um debate sobre a efetividade da tripartição dos Poderes – mais precisamente sobre o alcance do poder arbitral do Supremo Tribunal Federal. Em que medida ele estaria deixando de ser um órgão de controle da constitucionalidade das leis para exercer um papel transformador, assumindo funções do Executivo? Em vez de olhar para o passado, interpretando a Constituição numa perspectiva estrita, secundum legem, limitando-se a estabelecer as condições para o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, a corte não estaria com sua antena excessivamente voltada ao futuro?
De fato, em vez de preservar a ordem constitucional, agindo com base em critérios lógico-formais, por vezes o STF preocupa-se mais com a eficiência dos resultados de suas decisões. O problema é que, se passar a interpretar a Constituição sistematicamente de modo extensivo, praeter legem, ele tenderá a perder sua neutralidade. Uma atuação ativista pode afrontar o princípio da divisão dos poderes, segundo o qual a relação de equilíbrio entre eles implica uma força capaz de controlá-los de modo politicamente isento. Esse princípio, que está na base no moderno Estado de Direito, diferencia a política, que é o campo dos antagonismos e paixões, e o direito, que é o locus da objetividade decorrente do rigor lógico-formal e da neutralidade ideológica.
Sem compreender as especificidades dessa discussão, um general do Palácio do Planalto fez, no final do ano, afirmações insensatas sobre ela. Criticou as decisões que têm sido tomadas por ministros do STF, acusando-os de tentar “esticar a corda até arrebentar”. E disse que, por ter de manter o presidente da República informado, precisa “tomar dois Lexotan por dia para não o levar a adotar uma atitude mais drástica em relação ao STF”.
O segundo desdobramento da ampliação do protagonismo judicial está nas pesquisas sobre o STF. Até há alguns anos, elas eram descritivas ou primavam por um tom ensaístico. Careciam de rigor metodológico, precisão conceitual e foco. Hoje elas revelam o que os estudos mais antigos não mostravam. Deixam claro que cabe ao STF dar a última decisão no caso de crises institucionais resultantes de divergências na interpretação do direito. Explicitam que o direito não é uma ciência exata, mas social, razão pela qual está sempre sujeito a controvérsias com relação ao modo como é aplicado. E apontam que, apesar de o STF ser por princípio um poder neutro, isso não implica indiferença política com relação ao funcionamento das instituições.
Se estamos regidos por uma Constituição, ela é o que os responsáveis por sua aplicação decidem o que é – já afirmavam alguns ministros da Suprema Corte americana há mais de um século. A base dessa afirmação é a consciência de que não há interpretação literal da lei. A vida do direito não é lógica, é experimento, dizia, à época, o ministro Wendell Holmes Jr. Segundo ele, os valores morais prevalecentes, as teorias políticas e até os preconceitos dos juízes com relação às pessoas têm mais importância do que os silogismos, na determinação das regras pelas quais os homens são governados. É por isso que o sistema jurídico não pode ser derivado, como a matemática, de um conjunto de axiomas – concluía.
A importância das pesquisas feitas pelas novas gerações de publicistas, como Virgílio Afonso da Silva e Conrado Hubner, em São Paulo, Diego Argüelles, Daniel Sarmento e Ivar Hartmann, no Rio, e Marcus Faro de Castro, em Brasília, por exemplo, reside justamente neste ponto. Elas mostram com funcionam os processos interpretativo e deliberativo do STF. Do ponto de vista da interpretação do direito, revelam que, quando aplicam a Carta, exercendo o papel de guardiães da legitimidade constitucional, os ministros do STF seguem algum método para cobrir o fosso entre a ordem legal e as condições efetivas da vida brasileira. Algumas vezes recorrem aos princípios gerais de direito que informaram a redação da própria Constituição. Em outras, optam por interpretações extensivas, conscientes de quem pronuncia as palavras da lei na prática define seu sentido num caso concreto. Sabem que só assim conseguirão enfrentar o desafio de ajustar sua função a uma sociedade em mudança – ainda que isso possa aumentar o risco de eventual arbítrio judicial. Têm consciência de que, se ignorarem a realidade, em nome da segurança jurídica e de uma visão estreita da tripartição dos poderes, a ordem jurídica será afrontada por uma sociedade que não se acha protegida pela Constituição.
Do ponto de vista do processo deliberativo, essas pesquisas constatam que, pelos motivos acima apontados, decisões não unânimes no STF tendem a ser inevitáveis. Com base em entrevistas com ministros da corte, mapeiam o debate sobre se suas divergências devem ser tornadas públicas ou se o dissenso interno não deve ser divulgado. Também discutem se a divergência pública possibilita maior diálogo do STF com a sociedade, aumentando a aceitação das decisões judiciais. Mostram como um voto divergente e minoritário pode ser um voto seminal, convertendo-se numa decisão à frente de seu tempo e se tornando uma posição majoritária no futuro. Revelam o fenômeno dos votos concorrentes – aqueles que, apesar de não divergirem do resultado final do julgamento, discordam do caminho para se chegar a ele. Explicam como não é factível supor que todos os ministros da corte, por terem sido indicados por diferentes presidentes da República, tenham a mesma compreensão sobre o papel de um órgão colegiado, o que abre caminho para decisões judiciais opostas sobre temas semelhantes. E indagam se, como os ministros escrevem seus votos antes de conhecer os votos dos demais e sem saber qual será o voto vencedor, isso não prejudica um diálogo capaz de apontar os eventuais defeitos de uma decisão majoritária.
Por desconhecer os processos interpretativo e deliberativo do STF, o general do Palácio do Planalto errou grosseiramente ao acusar o Judiciário de exorbitar. O problema não é o despreparo jurídico de seu autor, mas as implicações institucionais de sua fala. Vinda de um ministro de um governo que militariza a máquina governamental, despreza direitos fundamentais e convoca multidões de fanáticos para aplaudir medidas antidemocráticas propostas pelo presidente em seus delírios de onipotência, essa fala revela que golpismo jamais foi uma palavra vazia para essa gente. É uma obsessão de um grupo que ascendeu acidentalmente ao poder, em 2018. E, quanto maior é sua insegurança com relação à eleição de 2022, maior é essa obsessão.
*José Eduardo Faria, titular da Faculdade de Direito da USP. Chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Foi um dos ganhadores do Prêmio Jabuti de Literatura em 2012, na área de direito
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