segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

MINERAÇÃO ARTESANAL ? CONTA OUTRA

Cristina Serra, Folha de S.Paulo

A mais recente novidade na fábrica de mentiras do dicionário bolsonarista é a tal da mineração artesanal, objeto de um decreto presidencial para formulação de políticas públicas para o setor. O decreto constrói uma realidade inexistente, como se a mineração no Brasil ainda estivesse no tempo da bateia.

O decreto é mais um exemplo da persistência do governo em legalizar práticas criminosas, como o garimpo em terras indígenas. Sobre esse assunto, é de grande relevância a investigação feita pelo Instituto Escolhas, "Raio X do Ouro", a respeito da extração e comercialização do ouro no Brasil (2015-2020). O relatório conclui que quase metade (229 toneladas) da produção nacional do período tem indícios de origem ilegal.

A pesquisa mostra os mecanismos de "lavagem" da procedência do metal para introduzi-lo nos fluxos nacionais e internacionais de comércio, com a participação de instituições financeiras, para que o ouro chegue ao consumidor com aparência lícita. Uma aliança comprada numa joalheria de São Paulo, por exemplo, pode estar contaminada por uma cadeia de ilegalidades cometidas na Amazônia.

A mineração (mesmo a ilegal) requer alto investimento, opera em escala industrial e movimenta dinheiro grosso. Tão grosso que atraiu a atenção de militares de pijama. A Agência Pública revelou que o general Cláudio Barroso Magno Filho atua como lobista de um banco canadense e suas mineradoras na Amazônia. A Folha mostrou que Augusto Heleno autorizou pesquisa mineral em área intocada da região. Recuou posteriormente.

A indústria da mineração gasta muito dinheiro com greenwashing, vendendo a falseta de uma atividade sustentável. Se isso fosse sério, a primeira coisa a fazer seria condenar a agenda que beneficia criminosos. Outro passo importante seria pagar as justas indenizações aos atingidos pelos desastres. Que o digam as vítimas de Mariana e Brumadinho. Sem isso, o que sobra é o vale tudo e a lei do mais forte.

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MODELO PARA ELEIÇÃO AO LEGISLATIVO COMPLETA 90 ANOS

Renata Galf, Folha de S. Paulo

Modelo para eleição ao Legislativo completa 90 anos ainda sob disputa

Hoje, nas eleições para o Legislativo, com exceção do Senado, o eleitor pode estar ajudando a eleger não o candidato a quem deu seu voto, mas um outro candidato mais bem votado deste mesmo partido.

Isso ocorre porque o Brasil adota o sistema eleitoral proporcional, em que as cadeiras na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais são distribuídas não simplesmente com base em quais candidatos receberam mais votos, mas sim de modo proporcional à votação total de cada partido.

A introdução deste tipo de sistema no país acaba de completar 90 anos. Em fevereiro de 1932, Getúlio Vargas decretou um novo Código Eleitoral que, além da representação proporcional, trazia outras inovações como a criação da Justiça Eleitoral e a introdução do voto feminino.

“Porque a eleição exige um número menor de votos neste tipo de sistema político, ele tende a favorecer minorias”, explica Andréa Freitas, que é professora de ciência política da Unicamp e coordenadora do Núcleo de Estudos das Instituições Políticas e Eleições do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

“Ele não é um sistema completamente fechado só para os grandes partidos, como é o caso de sistemas majoritários como o dos Estados Unidos”, diz.

O sistema proporcional aprovado em 1932, contudo, além de considerado complexo, ainda não era totalmente proporcional. Feitos os cálculos dos eleitos pelos quocientes eleitoral e partidário, a distribuição das sobras das cadeiras era feita apenas com base nos mais votados.

A Constituição de 1891, a primeira promulgada após a proclamação da República, determinava que a Câmara dos Deputados seria composta “mediante o sufrágio direto, garantida a representação da minoria”.

Por minorias, à época, entendia-se os grupos políticos de oposição ao governo, as minorias políticas. Apesar da previsão constitucional, a realidade foi outra.

Ao longo da Primeira República (1889-1930), a tônica eleitoral era marcada pela hegemonia dos partidos republicanos estaduais e pela política dos governadores, em que as elites locais garantiam apoio ao governo federal e vice-versa.

Nesse período, para além da discussão sobre como combater as fraudes eleitorais generalizadas, também se fazia presente o debate a respeito de mudanças nas leis, de modo a permitir que a oposição ganhasse assentos no Parlamento.

Em 1916, por exemplo, a legislação previu o voto cumulativo, o que permitia ao eleitor concentrar em um mesmo candidato todos os votos de que dispunha, ao invés de distribuí-los entre diferentes candidatos. A regra poderia favorecer grupos de oposição, na medida em que elas apresentassem apenas um candidato, o que permitiria concentrar votos.

Outras regras, até anteriores à República, chegaram a ser implementadas, contudo sem que se convertessem em uma garantia efetiva de acesso das oposições a assentos no Legislativo.

Em 1868, o político e romancista José de Alencar, conhecido por clássicos da literatura como Iracema, alertava para a necessidade de representação das minorias no livro “O systema representativo”.

Já em 1893, o político gaúcho Assis Brasil defendia, em “A Democracia Representativa”, a adoção do sistema que, de fato, quase 40 anos mais tarde seria implementado.

Assis Brasil foi nomeado por Vargas como um dos membros da comissão que reformaria as regras eleitorais do país. O jurista foi um dos integrantes da chamada Revolução de 1930, movimento que depôs a Primeira República e que tinha como uma de suas bandeiras a moralização das eleições.

Se antes da reforma eleitoral os partidos com mais votos nas urnas raramente viam seus candidatos derrotados, o cenário pós-32 é outro, aponta o pesquisador e professor de ciência política Paolo Ricci, da USP.

Ricci é organizador do livro “O Autoritarismo Eleitoral dos Anos 30 e o Código Eleitoral de 1932“, que reúne artigos de pesquisadores de diferentes instituições.

“Um caso clássico de São Paulo é o PRP (Partido Republicano Paulista), que dominou a cena partidária da Primeira República”, diz. “Com o sistema proporcional, isso significa que há um mecanismo institucional, ou seja, uma regra que permite às oposições serem representadas, mesmo elas ganhando poucos votos.”

Ao calcular as taxas de sucesso dos partidos vitoriosos nos pleitos da Primeira República e da década de 30, Ricci aponta que houve diferenças consideráveis. Tal taxa vem da quantidade de candidatos do partido mais bem votado em cada estado que foram eleitos.

Enquanto a média da Primeira República foi de 95,2%, nas eleições dos anos 1930, ela passou para 77,1%.

“Isso mostra que nos anos 1930 os partidos mais bem-sucedidos não conseguem eleger todos os candidatos que concorrem ao pleito, diferentemente da Primeira República.”, analisa Ricci.

Em São Paulo, o valor percentual das derrotas do PRP vai de 4,8%, entre 1899 e 1930, para 22% e 35%, respectivamente, nas eleições de 1933 e 1934.

Ao mesmo tempo em que Vargas parece acenar para uma postura democrática com introdução de uma regra que dá espaço à oposição, especialistas apontam que é preciso analisar com mais cuidado as motivações do grupo que tinha ascendido ao poder com o golpe de 1930.

Com os estados nas mãos de interventores, que tinham sido nomeados pelo próprio Vargas, o gaúcho buscou tirar vantagem na reorganização das forças políticas e no alistamento de eleitores.

Ainda assim, de acordo com o cientista político e professor da USP Glauco Peres, que assina artigo em conjunto com Ricci sobre o tema, é preciso levar em conta que, nas décadas anteriores, era esse grupo que estava na oposição e não havia garantias de que eles venceriam, nas urnas, as oligarquias locais.

“No fundo, apesar de ter acesso ao governo, eles não tinham braço, não tinham uma organização forte o suficiente para disputar com as oligarquias anteriores”, analisa Peres. “Criar a legislação proporcional era uma forma de que, nos lugares onde eles fossem minoria, eles ganhassem assentos também.”

“Essa proposição era conservadora, do ponto de vista de quem estava no governo, porque reconhecia nos adversários, que eram as elites de Minas e São Paulo em particular, um potencial enorme para permanecer no poder.”

O levantamento dos pesquisadores mostra, ainda assim, que as eleições de 1933 e 1934 viram um aumento no número de partidos em todos os estados em comparação ao período anterior.

Enquanto na Primeira República, entre 1899 e 1930, o número médio de siglas disputando vagas para a Câmara dos Deputados foi de 1,9%, esse valor subiu para 4,9% em 1933, e para 6% no ano seguinte.

Pelos dados coletados nos boletins eleitorais do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), foram contabilizados 109 partidos em 1933 e 128 partidos em 1934. Naquele momento, o Brasil ainda não possuía partidos nacionais, as agremiações tinham atuação estadual, daí o número tão grande.

Para Ricci, a variação é uma consequência direta da introdução da proporcional, pois com a possibilidade de os partidos conseguirem acessar cadeiras na Câmara, também a disputa entre as correntes políticas em todos os estados aumentou.

Como explica a cientista política Freitas (Unicamp), o aumento de partidos é uma das marcas do sistema representativo.

De acordo com a professora, entretanto, o número elevado foge do padrão visto em outros países que adotam o sistema. Com mais de 30 agremiações, o número excessivo de partidos no desenho brasileiro é alvo de constantes críticas.

“Essa quantidade absurda de partidos que a gente tem no Brasil não é reflexo do sistema proporcional propriamente dito, mas de outros mecanismos institucionais”, diz ela, citando como exemplo as maneiras como sãos distribuídos os fundos eleitoral e partidário, assim como o horário eleitoral gratuito.

Como a depender do total de votos de cada partido também pode acontecer que um candidato pior posicionado, mas de um partido mais bem votado seja eleito, muitos partidos buscam por campeões de voto ou puxadores de votos.

Freitas ressalta que seria importante a população ter conhecimento sobre como o voto é convertido em cadeiras. “O nosso sistema funcionaria melhor se as pessoas tivessem clareza das escolhas que elas estão fazendo”, analisa. “Você está dando uma cadeira primeiro ao partido e não ao candidato.”

Ao longo dos últimos anos, o Congresso já tentou mais de uma vez abandonar o sistema proporcional.

No ano passado, por 423 votos a 35, o modelo chamado distritão foi rejeitado pelo plenário da Câmara pela terceira vez —as duas vezes anteriores ocorreram em 2015 e 2017.

No distritão, seriam eleitos para a Câmara, Assembleias e Câmaras Municipais os candidatos mais bem votados.

Entre os pontos negativos do modelo, segundo especialistas, está o fato de que ele favoreceria que pessoas mais conhecidas, como celebridades, sejam eleitas. Além disso, enfraqueceria os partidos políticos.

Outra diferença entre os dois modelos é que, com o sistema majoritário, os votos dados em candidatos não eleitos são desperdiçados, enquanto, no proporcional, eles podem ajudar a eleger outros concorrentes do mesmo partido.

Nas últimas eleições para o Senado em São Paulo, por exemplo, os dois candidatos eleitos tiveram respectivamente 25,8% e 18,6% dos votos válidos. Isso implica que mais da metade dos votos foi dada a candidatos não eleitos.

Para Peres, não se tem clareza sobre quais problemas as propostas que têm sido colocadas sobre a mesa no Brasil buscam resolver.

“Quando se diz, a gente tem baixa representatividade do sistema político, isso passa pelos partidos também. Então a gente poderia imaginar alterações que mudem a maneira como os partidos funcionam sem alterar o código eleitoral”, diz.

“Distritão, por exemplo, não tem sentido nenhum, encarece a eleição e vai tornar ainda mais elitizada. As propostas que apareceram, até agora, elas não têm muita razão de ser, porque você não sabe que problemas elas vêm resolver.”




COMO FUNCIONA O SISTEMA PROPORCIONAL HOJE

A QUAIS CARGOS SE APLICA

Câmara dos Deputados

Assembleias Legislativas

Câmaras Municipais

COMO É CALCULADO

Quociente eleitoral: Após a apuração dos votos, primeiramente, é calculado o número mínimo de votos que um partido tem que ter para ter direito a pelo menos uma cadeira

Quociente eleitoral = votos válidos totais dividido pelo total de cadeiras

Quociente partidário: Sabendo o equivalente de votos mínimo para obter uma cadeira, são calculadas as cadeiras a que cada partido tem direito. O número é obtido pela soma dos votos obtidos por todos os candidatos de um partido (ou federação partidária), que é então dividida pelo quociente eleitoral.

Quociente partidário = votos válidos do partido são divididos pelo quociente eleitoral

QUEM É ELEITO

Apenas os candidatos de partidos que atingiram o quociente eleitoral obtém cadeiras

Os candidatos eleitos de cada partido são aqueles que tiveram mais votos, dentro de cada partido, até atingir o quociente partidário

Para evitar que candidatos com votação inexpressiva sejam eleitos, puxados por campeões de voto, desde as últimas eleições nacionais, cada candidato precisa ter obtido sozinho pelo menos 10% do quociente eleitoral para ser eleito

Depois disso, se sobrarem cadeiras, elas também são distribuídas de modo proporcional entre os partidos

SISTEMA MAJORITÁRIO

A QUAIS CARGOS SE APLICA

Presidência da República

Governos estaduais

Prefeituras

Senado

QUEM É ELEITO

​Os candidatos mais votados

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FALSA NEUTRALIDADE

Taísa Medeiros, Correio Braziliense

Bolsonaro garante que Brasil permanecerá neutro em relação ao conflito na Ucrânia

O presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), voltou a reafirmar que o Brasil permanecerá neutro em relação ao conflito na Ucrânia. Em coletiva de imprensa, no fim da tarde de ontem, no Guarujá, onde passa o carnaval, ele ainda questionou: “Você quer que eu faça o que pra acabar com a guerra? Tudo que eu podia fazer eu já fiz e vou continuar fazendo”, disparou. Bolsonaro contou que ele e o presidente russo, Vladimir Putin, conversaram por duas horas, ontem, por telefone.

O chefe do Executivo defendeu que uma postura mais forte poderia agravar a fome e a miséria no Brasil, por conta das relações comercias com a Rússia. “No meu entender, nós não vamos tomar partido. Vamos continuar pela neutralidade e ajudar, na medida do possível, na busca por soluções. Eu vou esperar o relatório para ver como vai ser minha posição. Isso [uma posição mais crítica] pode trazer sérios prejuízos para a agricultura no Brasil”, defendeu. “Não queremos trazer mais sofrimentos.” A posição de Bolsonaro foi reforçada pelo embaixador brasileiro nas Nações Unidas (ONU), Ronaldo Costa Filho, durante a votação para uma convocação extraordinária da Assembleia Geral do órgão.

Ao ser questionado a respeito da conversa que teve com Putin quando foi à Rússia, no início do mês, e ontem, por telefone, Bolsonaro afirmou que não poderia dar mais detalhes, mas garantiu que foi um encontro descontraído. O presidente ainda teceu comentários elogiosos a Vladimir Putin. “Todas as vezes que conversei com o Putin foi uma conversa de altíssimo nível.” Durante toda a entrevista, o chefe do Executivo brasileiro optou por não fazer nenhuma crítica ao presidente russo.

Bolsonaro disse, ainda, que é um “exagero falar em massacre” na Ucrânia. “Eu entendo que não há interesse por parte do líder russo de praticar um massacre. Ele está se empenhando em duas regiões do sul da Ucrânia que, em referendo, mais de 90% da população quis se tornar independente, se aproximando da Rússia. Uma decisão minha pode trazer sérios prejuízos para o Brasil”, reiterou.

Ainda sobre o conflito, as possíveis ameaças nucleares preocupam líderes ao redor de todo o mundo. Quando questionado sobre este fato, o presidente brasileiro definiu como uma “proposta natimorta”. “Não tem cabimento de negociar. Ninguém quer usar a pólvora, todo mundo prefere usar a saliva, mas você não sabe o que acontece do lado de lá”, disse. “A maioria dos chefes do mundo pensam o que eu estou pensando: querem a solução do caso”, defendeu.

Estima-se que ainda existam centenas de brasileiros presos na Ucrânia. Sobre o resgate destes cidadãos, o presidente voltou a dizer que as aeronaves de transporte tático/logístico C-390 Millennium estão à disposição para uma possível incursão na Ucrânia. “Se tiver brasileiros, havendo vaga, eles entrarão nos nossos aviões. Eu não acredito que se bloqueie as fronteiras, porque é uma questão humanitária. Nenhum país quer expor vidas a uma guerra, ainda mais gente de fora”, observou.

Sessão extraordinária

Ainda no domingo, o embaixador brasileiro na ONU, Ronaldo Costa Filho, reafirmou, em reunião extraordinária, o voto do Brasil contrário à Rússia. O encontro determinou a convocação extraordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas para hoje.

Costa Filho, porém, atenuou o discurso em relação ao da última sexta-feira, em que condenou veementemente a invasão à Ucrânia. Ontem, o embaixador alertou que sanções econômicas de Europa e Estados Unidos mais o envio de armas para a Ucrânia podem piorar a situação do conflito.

“O fornecimento de armas, o recurso a ciberataques e a aplicação de sanções seletivas, que podem afetar setores como fertilizantes e trigo, com forte risco de aumentar a fome, acarretam o risco de agravar e espalhar o conflito e não de resolvê-lo. Não podemos ignorar o fato de que essas medidas aumentam os riscos de um confronto mais amplo e direto entre a Otan e a Rússia”, argumentou.

O embaixador também defendeu que o Conselho ainda não exauriu os recursos para conter o avanço do conflito. “O Conselho, com a sua responsabilidade de manter a paz internacional, não exauriu ainda os mecanismos de que dispõe para contribuir para uma solução diplomática em direção à paz”, afirmou. Costa Filho ainda reiterou o pedido para que cessem as hostilidades e para que haja diálogo entre as partes envolvidas.

Apenas a Rússia foi contra a resolução aprovada para que ocorra uma Sessão de Emergência. Foram 11 votos a favor, um contra e três abstenções — da China, da Índia e dos Emirados Árabes Unidos.

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AVENTURA HUMANA DO VÍRUS À GUERRA

Artigo de Fernando Gabeira

Quando a pandemia entra em declínio, sopram ventos de guerra. A Rússia invadiu a Ucrânia e rompeu com a esperança global de que as fronteiras não sejam definidas pela força militar, mas por negociações diplomáticas.

Em 2018, estive em Moscou. Era Copa do Mundo, o que não impediu que eu conversasse com alguns russos sobre outros temas. A Ucrânia, para quase todos com quem falei, era tida como um pedaço da Rússia, uma perda dolorosa.

Putin decidiu completar a tarefa que iniciou em fevereiro de 2014, anexando a Crimeia. É indiscutível sua força militar. No entanto nem sempre a força bruta triunfa, apesar da admiração dos chamados realistas. Funcionou na Crimeia, não funcionou no Afeganistão.

Rússia e China parecem unidas no momento. Cada vez mais, cresce sua importância diante de um Ocidente perplexo. Ambas têm uma visão específica sobre democracia, direitos humanos, liberdades individuais.

Confesso que é uma visão diferente da minha. O que não significa uma certeza de que estejamos no caminho certo neste lado do mundo.

Não tenho espaço para grandes digressões. Outro dia, em Paris, o fotógrafo suíço René Robert, aos 84 anos, morreu na rua, depois de ficar nove horas no frio, sem que ninguém o socorresse. Para mim, é um sinal de declínio civilizatório.

Depois de a Rússia anexar a Ucrânia, a China buscará Taiwan, e o jogo continua. Pretextos nunca faltam. A Ucrânia não entraria na Otan nos próximos dez anos. Putin apenas aproveitou o que lhe pareceu um momento favorável.

Mas será mesmo? Há muitas sanções. O Ocidente pode não se envolver diretamente na Ucrânia, mas fará tudo para que a Rússia pague um preço alto pela invasão.

Os americanos conhecem esse peso, sobretudo na forma dos sacos pretos com os corpos de soldados que voltam ao país invasor, sem contar os gigantescos custos econômicos. Se a Europa encontrar alternativas para a energia que importa da Rússia, se o novo gasoduto para a Alemanha não vingar — variáveis somadas a um relativo isolamento tecnológico, custos de guerra.

Quando Bolsonaro foi à Rússia, escrevi um artigo dizendo que era uma viagem perigosa. Sua inexperiência aumentava os riscos. Aquela frase — “O Brasil é solidário com a Rússia” — não expressa um consenso nacional.

Ele queria dizer que o Brasil era solidário com quem buscava soluções pacíficas. Mas, àquela altura dos acontecimentos, com 150 mil soldados na fronteira com a Ucrânia, Putin não acreditava tanto em saída diplomática.

Neste primeiro momento, a tendência é enfatizar o aumento do preço do combustível e suas consequências na economia.

É pouco, da política internacional à estrategia do agronegócio, o Brasil terá de reavaliar tudo, diante desse fato novo.

Bolsonaro foi à Rússia vender carne e comprar fertilizante, assim como alguns itens militares. Será que valeu? A Rússia está ampliando sua atividade agrícola, favorecida pelo aquecimento global, que torna algumas terras agricultáveis. Que peso terão a partir de agora os negócios militares, sob o impacto das sanções ocidentais?

O fundamento de nossa política externa é a busca da paz e a solução pacífica dos conflitos. Putin rompeu com essa lógica.

É uma situação delicada tanto para o país como para indivíduos. De que lado ficar? O mundo ocidental não é um paraíso. Mas valores democráticos e, sobretudo, o respeito às fronteiras nacionais estão em jogo. Ao Brasil não interessa um planeta onde as potências definam áreas de influência e façam nela o que bem entenderem.

Independentemente do debate que, certamente, o tema inspira, sobretudo num ano de eleições, é fundamental se preparar também para a onda de refugiados que se espalhará para a Europa e, certamente, chegará aos países do Novo Mundo.

É hora de convocar uma ampla reunião de emergência no Congresso para discutir a crise ucraniana no Brasil. O tema transcende a um governo hesitante.

Artigo publicado no jornal O Globo em 28/02/2022

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INVASÃO DA UCRÂNIA É MÁ NOTÍCIA PARA A ESQUERDA E MOTIVO DE CONFUSÃO PARA A DIREITA

Celso Rocha de Barros, Folha de S. Paulo

No que se refere à invasão da Ucrânia por tropas russas, duas coisas devem ser óbvias para a esquerda latino-americana: em primeiro lugar, ninguém precisa nos explicar que os Estados Unidos também são capazes de agressões imperialistas. Em segundo lugar, ninguém aqui aceita a ideia de que potências nucleares têm o direito de invadir países vizinhos que tentam sair de suas áreas de influência.

A Ucrânia é um país soberano que deve ter suas fronteiras preservadas.

Qualquer outra posição dentro da esquerda está errada. Não, uma vitória russa não será um triunfo do anti-imperialismo; será uma vitória do imperialismo russo.

Não, um fortalecimento do imperialismo russo não aumentará a margem de manobra dos países mais pobres para extrair concessões econômicas dos impérios em disputa: a Rússia continua sendo um país com graves problemas econômicos que não está em condições de ajudar ninguém.

E, pelo amor de Deus, uma vitória russa não representará progresso para os ideais de esquerda. Isso já não era verdade na época da União Soviética: a exportação da revolução pelos tanques soviéticos foi sempre uma tragédia. Mas no caso do regime russo atual a ideia é francamente bizarra: Putin é um conservador militarista que governa aliado a oligarcas.

Sim, com todos esses problemas, a Rússia pode ser um aliado na formação de um mundo multipolar. Mas se você acha isso, a guerra é uma tragédia: um aliado potencial do multipolarismo se enfiou em um conflito que pode lhe tirar legitimidade na arena internacional por muitos anos.

Por fim, há gente comemorando a invasão como desafio à ordem internacional pós-Guerra Fria. Na verdade, o que se viu na esfera internacional nos últimos anos foi o seguinte movimento: tudo que a globalização capitalista tem de mais selvagem —superexploração da força de trabalho, degradação ambiental, especulação financeira— prolifera livremente.

O que entrou em crise foram os esforços de tornar esse processo um pouco mais civilizado, como a ONU ou a União Europeia. A invasão reforça essa tendência.

Enfim, a invasão da Ucrânia foi uma notícia muito ruim para quem defende os valores da esquerda ou para os liberais que esperam que o capitalismo seja acompanhado das instituições de uma sociedade aberta.

Para quem defende as versões mais reacionárias do capitalismo, porém, alguma confusão ideológica diante da guerra na Ucrânia é compreensível.

Na semana passada, políticos e comentaristas de extrema-direita americanos, como Steve Bannon, elogiaram o atual regime russo: segundo Bannon, na Rússia as pessoas sabem em que banheiro ir, sem essa história de transgênero.

Não é por acaso, portanto, que o bolsonarismo ficou atordoado com a invasão da Ucrânia. Bolsonaro havia acabado de ir à Rússia proclamar-se “solidário” a Putin; mas seus militantes sempre defenderam “ucranizar” o Brasil, referindo-se às táticas da extrema-direita ucraniana.

Bolsonaro gostaria de unir-se à Otan, como o governo da Ucrânia, mas também gostaria de instaurar uma ditadura como a de Putin.

Sonha exatamente com o capitalismo sem civilização que vem ganhando espaço, mas não tem coragem de desafiar os Estados Unidos. Como Steve Bannon diante do banheiro, Jair ficou paralisado pela dúvida e sujou as próprias calças.

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O TELEGRAM CEDEU

Pablo Ortelado, O GLOBO

Depois de muita especulação sobre o que fazer com o Telegram, o ministro Alexandre de Moraes deu um ultimato e a empresa finalmente cumpriu uma decisão judicial brasileira. Em sua decisão, o ministro determinou a suspensão do canal do ativista bolsonarista Allan dos Santos, sob pena de multa de R$ 100.000 diários e a suspensão do aplicativo de mensagens no país, inicialmente por 48 horas. O Telegram, que sistematicamente se negava a atender decisões judiciais, cedeu e bloqueou no Brasil os canais de dos Santos. A mudança de postura da empresa terá grandes repercussões para o processo eleitoral no Brasil.

O Telegram é um aplicativo de mensagens criado pelo empresário russo Pavel Durov com o propósito declarado de proteger uma visão radical da liberdade de expressão. A empresa tomou algumas ações para isso: estabeleceu sua sede em uma jurisdição favorável e remota (Emirados Árabes Unidos) e distribuiu a guarda de dados dos seus usuários em servidores em diferentes países, de maneira que, para entregar dados íntegros, seriam necessárias decisões judiciais em diversas jurisdições. Além disso, o Telegram se notabilizou por não constituir representantes nos mercados nos quais operava e não atender decisões judiciais desses países.

Nos últimos anos, à medida que a base de usuários do aplicativo crescia, crescia também a pressão de autoridades policiais e judiciais para combater atividades ilícitas no aplicativo, que iam do terrorismo à pedofilia. Até o ano passado, o Telegram fez concessões pontuais a sua defesa radical da liberdade de expressão, colaborando pontualmente com a polícia europeia em processos que envolviam terrorismo e violência. Sua postura resistente em atender a justiça fez com que o aplicativo fosse bloqueado em muitos países, a maioria deles pouco democráticos.

Tudo começou a mudar com as pressões de Alemanha e Brasil desde o final do ano passado. Na Alemanha, ameaças contra políticos e a organização de manifestações violentas levaram a polícia e a justiça alemãs a aumentar a pressão contra a empresa, chegando a ameaçar bloquear o aplicativo. No Brasil, o TSE tentou convidar o Telegram para planejar a aplicação das regras eleitorais e a empresa sequer se dignou a receber a correspondência. Depois disso, o ministro Luis Roberto Barroso começou a discutir em entrevistas o bloqueio do aplicativo e, no Congresso, o PL das Fake News retomou a tramitação com um artigo que obrigava empresas com muitos usuários a constituir representantes no Brasil, prevendo o bloqueio para quem não o fizesse.

Nas últimas semanas discutiu-se muito no Brasil como fazer o Telegram acatar ordens judiciais sem efetivamente bloquear o uso do aplicativo no Brasil, uma medida extrema que prejudicaria milhões de usuários. Na Alemanha, a pressão parece ter funcionado com o Telegram finalmente bloqueando contas e canais por determinação das autoridades do país.

A justiça brasileira estabeleceu contato com as autoridades alemãs e não se sabe, neste momento, o quanto isso colaborou para que o Telegram também atendesse a justiça brasileira. Além disso, descobriu-se, recentemente, que o Telegram tinha constituído advogados no país para proteger seus interesses em propriedade intelectual. Foi essa empresa de advogados que o ministro Alexandre de Moraes citou na sua decisão.

O cumprimento de uma decisão judicial brasileira abre um precedente que pode ter grandes consequências para o processo eleitoral. Nos últimos anos, os bolsonaristas vêm construindo um sólido ecossistema de grupos e canais no Telegram complementando a rede de grupos de WhatsApp que criaram desde 2018.

Além dos usos lícitos para mobilização e propaganda, esses grupos e canais têm sido usados para difundir informações falsas que tentam minar a confiança dos eleitores nas urnas e no sistema eleitoral brasileiro. Há motivo para supor que esses grupos e canais vão ser cada vez mais utilizados para sabotar a confiança nas eleições e, em caso de derrota de Bolsonaro, mobilizar ativistas para contestar o resultado. Com o estabelecimento deste precedente, esses grupos e canais podem agora ser monitorados e eventuais ações ilícitas podem ser punidas antes que seja tarde demais.

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NEGOCIAÇÕES ENTRE UCRÂNIA E RÚSSIA COMEÇAM NA BELARUS

Patricia Pamplona, Folha de S.Paulo

Negociações entre Ucrânia e Rússia começam na Belarus enquanto guerra entra no 5º dia

Depois de uma madrugada de mais explosões em diferentes partes da Ucrânia nesta segunda-feira (28), as atenções no quinto dia de guerra voltam-se a Gomel, pequena cidade da Belarus que recebe enviados dos presidentes Vladimir Putin e Volodimir Zelenski em uma mesa de negociação.

Moscou e Kiev concordaram no domingo em se sentar para negociar, e o governo da Ucrânia chegou a dizer que a ofensiva russa contra suas principais cidades diminuiu o ritmo. Mas os relatos de ações militares brutais em cidades como Kiev e Kharkiv, as maiores da Ucrânia, continuam se acumulando.

A depender das condições do Kremlin, Zelenski pode acabar assinando sua rendição. O gabinete do líder ucraniano, porém, afirma que o objetivo é buscar um cessar-fogo e a retirada das tropas russas.

Inicialmente, o presidente rejeitou a iniciativa. Em um pronunciamento, disse que seria possível conversar na Belarus se os russos não tivessem usado a ditadura aliada como uma das bases para seu ataque —justamente contra Kiev, a menos de 200 km da fronteira sul belarussa.

O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, não disse o que a delegação de seu país vai exigir. Nesta segunda, afirmou que Moscou está interessado em chegar a um acordo e lamentou que a negociação não tenha começado ainda no domingo. Já o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, afirmou que a Rússia aceitou o encontro sem precondições, o que seria resultado da resistência imposta pelo país aos invasores.

Na manhã desta segunda (madrugada em Brasília), o Ministério das Relações Exteriores da Belarus publicou nas redes sociais a foto de uma grande mesa com bandeiras russas e ucranianas em sinal de que estava pronto para receber as delegações dos dois países em conflito.

A comitiva ucraniana chegou a Gomel poucas horas depois. Antes, Zelenski publicou um vídeo em que pede aos militares russos que entreguem suas armas. “Abandonem seus equipamentos. Não acreditem em seus comandantes, não acreditem em seus propagandistas. Salvem suas vidas”, disse ele, em russo.

O governo ucraniano afirmou, mais cedo, que Kiev apresentava um cenário mais tranquilo, diferente do visto nos últimos dias, quando a ofensiva russa cercou a cidade. Ainda assim, o Reino Unido diz que forças de Moscou permanecem 30 km ao norte e são contidas pelos ucranianos que defendem Hostomel.

Os combates também continuam em Chernihiv, no norte, onde um prédio residencial foi atingido por um míssil, o que causou um incêndio. Na região, o aeroporto de Jitomir também foi alvo durante a madrugada, segundo as forças de Kiev. O lançamento teria sido feito da Belarus, apesar de o país ter dito que não permitiria ataques a partir do seu território, em meio à expectativa da negociação entre as comitivas.

Segundo a imprensa ucraniana, os militares do país atribuíram uma eventual queda no ritmo da ofensiva à própria resistência. “Todos os esforços russos para ocupar [Kiev] falharam”, disseram as Forças Armadas. O discurso foi corroborado pelo Ministério da Defesa do Reino Unido, segundo o qual “falhas logísticas e a firme resistência ucraniana continuam a frustrar o avanço” de Moscou.

Por outro lado, o Ministério da Defesa da Rússia afirmou ter tomado as cidades de Berdianski e Enerhodar, além da planta nuclear de Zaporijchia, segundo a agência de notícias Interfax. As autoridades locais ucranianas relataram ainda combates em Mariupol, mas Kiev nega ter perdido o controle da usina nuclear.

Além da conversa em Gomel, outro diálogo aguardado nesta segunda é o do presidente americano, Joe Biden, com aliados dos EUA para “coordenar uma resposta unida”, segundo a Casa Branca divulgou na noite de domingo. O governo do democrata não deu detalhes sobre quem participaria do encontro, previsto para as 11h15 em Washington (13h15 em Brasília), mesmo horário em que a Assembleia-Geral da ONU debate uma resolução para condenar a invasão russa.

Uma medida do tipo já foi vetada por Moscou no Conselho de Segurança. Assim, na prática, a resolução serviu apenas para que os países mostrassem seu descontentamento com a iniciativa de Vladimir Putin sem gerar ações imediatas. O Ocidente tem adotado diversas medidas para reagir a Moscou, com sanções que incluem a proibição do uso do espaço aéreo por aeronaves do país e a desconexão de bancos russos do sistema internacional de transferências financeiras.

As sanções já levaram a uma queda de 15% do rublo em relação ao dólar e ao euro na abertura do mercado em Moscou nesta segunda, e a moeda só não caiu mais porque o Banco Central russo interveio.

Neste domingo, o G7 também ameaçou a Rússia com novas medidas, e o secretário de Estado dos EUA, ​Antony Blinken, garantiu que o grupo das principais economias do mundo estava “totalmente alinhado” contra a invasão da Ucrânia. As críticas aumentaram após Putin colocar suas forças nucleares em alerta —o governo britânico, no entanto, não viu grandes mudanças na postura nuclear russa.

Nesta segunda, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, disse que o bloco não iria se engajar em uma escalada em reação à atitude do mandatário russo. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, afirmou, porém, que a UE irá debater o ingresso da Ucrânia, o que pode alimentar as tensões. Zelenski pediu o acesso imediato ao bloco europeu sob um procedimento especial.​

A neutralidade da Ucrânia é o ponto principal das demandas feitas por Putin. O russo quer evitar que Kiev integre a Otan, a aliança militar ocidental, e, por tabela, a União Europeia.

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OCIDENTE E ORIENTE ESTÃO EM LUTA PELA HEGEMONIA UCRÂNIA

Luiz Carlos Azedo, Nas Entrelinhas, Correio Braziliense

Quando Alexander Hamilton exortou os norte-americanos a decidirem se “as sociedades humanas são mesmo capazes de constituir um bom governo, com base na reflexão e na escolha, ou se estão condenados para sempre a ter organizações políticas que são fruto do acidente e da força” (O Federalista, nº 1), em 1787, no debate que levou à consolidação a Constituição dos Estados Unidos, traçou o curso da linha divisória que separa o Ocidente democrático do resto do mundo. Os países que foram capazes de seguir esse caminho constituíram bons governos e foram adiante, ampliando consideravelmente a sua influência mundial; os que tomaram outro rumo, como a Alemanha nazista e, mais recentemente, a antiga União Soviética, amargaram o declínio, a disfunção e/ou o colapso.

Entretanto, depois da débâcle dos regimes comunistas do leste europeu, as democracias do Ocidente começaram a enfrentar uma crise de representação sem precedentes, provocada pela revolução tecnológica que elas próprias protagonizaram e as dificuldades de sustentar um modelo de Estado que se baseava muito mais no fabianismo, uma doutrina liberal-socialista, do que no Leviatã de Thomas Hobbes, o Estado liberal clássico. O Estado de bem-estar social, que fora fundamental para suplantar o chamado “socialismo real”, entrou em crise. Com isso, a democracia representativa passou a ter dificuldades para acompanhar as mudanças de uma economia globalizada.

É aí que entram em cena um pequeno país asiático e um gigante de dimensões continentais. A pequena Cingapura, que fora governada por Lee Kuan Yew por 30 anos e hoje é comandada por seu filho mais velho, Lee Hsien Loong, e a China de Deng Hisiao Ping, hoje liderada por Xi Jinping, operam um processo de modernização com resultados surpreendentes, a partir de governos autoritários, que passou a ser referência para diversos países no mundo. Inicia-se, assim, uma corrida para reinventar o Estado, na qual muitas vezes a democracia e o Estado de bem-estar social estão de mãos dadas numa rota suicida, por causa do populismo e do inchaço dos governos; em outras, em confronto aberto, no Estado mínimo, igualmente perigoso, devido às desigualdades.

Na China, os gestores buscam inspiração no Ocidente, miram o Vale do Silício, nos Estados Unidos, para reinventar o capitalismo; porém, olham para Cingapura na hora do “aggiornamento” do seu governo. A cidade-estado adota o sistema Westminster de governo unicameral, ou seja, é uma república parlamentar. O Partido de Ação Popular (PAP) ganhou todas as eleições desde a concessão britânica de autonomia interna em 1959. O país tem o terceiro maior poder de compra per capita do mundo, é um dos mais ricos do planeta.

Fim da História

Liderada pelos Estados Unidos, desde o colapso do comunismo europeu, a ideia hegemônica no Ocidente é de que a democracia é um credo universal, basta extirpar a tirania para que se enraíze; e que democracia e capitalismo são siameses, a livre escolha de uma parte não existe sem a da outra. Essas são as premissas básicas do famoso ensaio O fim da História, de Francis Fukuyama, o filósofo e economista norte-americano.

Democracia liberal e capitalismo, porém, não têm uma relação automática, e a equação capitalismo, autodeterminação e globalização não é de fácil solução. Mesmo nos Estados Unidos e na Europa, a democracia está sendo posta à prova por forças autoritárias e “iliberais”, que buscam a modernização conservadora. Não à toa o fantasma republicano de Donald Trump ronda o governo do democrata Joe Biden.

Na corrida entre governos democráticos e autoritários para reinventar o Estado e modernizar a economia, entre os quais algumas monarquias sanguinárias aliadas aos Estados Unidos, destacam-se a emergência da China, como segunda maior potência econômica do planeta, e a ascensão da Alemanha e da França como líderes de uma Europa Ocidental economicamente unificada. A resposta de Donald Trump nos Estados Unidos fora iniciar uma guerra comercial com o gigante asiático, ao mesmo tempo em que buscava e estimulava a adoção de um modelo político “iliberal” para acelerar o processo de modernização no Ocidente. Esse curso foi interrompido pela vitória de Joe Biden, que trouxe a maior potência econômica e militar do planeta para o eixo da reafirmação de sua hegemonia mundial, aliada à Inglaterra no Atlântico, e à Austrália, ao Japão e à Índia no Pacífico, num pacto militar para isolar a China.

O resultado foi a reaproximação entre a Rússia, que recrudesceu sua doutrina geopolítica ao invadir a Ucrânia, e a China, empenhada em levar a Nova Rota da Seda ao coração da Europa. O confronto entre Ocidente e Oriente está novamente instalado. No lugar do mundo globalizado e multipolar, que se desenhava a partir das disputas comerciais, estabeleceu-se uma nova bipolaridade, que se sustenta no equilíbrio estratégico-militar dessas potências nucleares e tem como divisor de águas a narrativa da democracia como modelo de vocação universal, como exortou Hamilton.

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CANAIS BOLSONARISTAS USAM BRECHAS DO YOUTUBE PARA SEGUIR NO AR

Marlen Couto, O GLOBO

Fake news: Canais bolsonaristas usam brechas do YouTube para seguir no ar

Brechas nas regras estabelecidas pelo próprio YouTube têm permitido que canais com vídeos removidos sucessivamente por desinformação sobre a Covid-19 sigam no ar. Em parceria com a consultoria Novelo Data, O GLOBO identificou que, nos casos do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e do pastor Silas Malafaia, bloqueios para a postagem de novos conteúdos não foram aplicados mesmo com a reincidência no desrespeito às normas internas.

Levantamento da consultoria mostra que Flávio já teve quatro vídeos retirados do ar pela plataforma — o primeiro episódio aconteceu em julho de 2020, e o segundo, em janeiro do ano passado. Os dois casos mais recentes de exclusão ocorreram em dezembro de 2021, com intervalo de 20 dias. Ao menos três deles abordavam a Covid-19, o que sugere violação da política do YouTube sobre o assunto.

Em nota divulgada após a última remoção, a plataforma disse que se tratava do primeiro aviso ao canal. Os dados da Novelo indicam, porém, que a conta do senador já tinha sido alvo de remoções antes e, portanto, deveria ter sido punida ao menos com um bloqueio de sete dias, o que não aconteceu. Procurado, o YouTube não esclareceu o critério adotado.

Situação semelhante ocorre em relação ao canal de Malafaia, que também teve quatro vídeos excluídos. As duas últimas remoções ocorreram nos dias 12 e 13 de janeiro, após ataques à vacinação infantil. Considerando as regras da rede, o canal deveria ter sido alvo, pelo menos, de um bloqueio de duas semanas. O YouTube também não comentou o critério adotado neste caso. Ao todo, o levantamento da Novelo mapeou 41 vídeos tirados do ar nos últimos 90 dias em 33 canais bolsonaristas — ao menos 22 publicações tratavam da Covid-19.

As regras do YouTube estabelecem que a punição a um canal pode acontecer por violações recorrentes ou depois de uma infração grave, como spam e pornografia. No caso das normas sobre a Covid-19, há um sistema de avisos. O modelo, porém, permite que um perfil descumpra seguidamente os parâmetros e receba advertências mais brandas, como bloqueios temporários, sem risco de exclusão permanente, caso as remoções ocorram fora de um intervalo de 90 dias.

Na primeira violação, é emitido um alerta, enquanto na segunda vez, há o impedimento de postar novos conteúdos por sete dias. No terceiro episódio (caso ocorra dentro de 90 dias, contados a partir da primeira ocorrência), a restrição de publicação se estende por 14 dias. Por fim, se o dono do perfil cometer outra infração no mesmo período de 90 dias, o canal é removido permanentemente. Ao longo desse processo, os canais podem recorrer das remoções, o que pode reverter as punições e “zerar” a contagem.

— É possível fazer um cronograma em que você nunca acumule três avisos em 90 dias — resume o pesquisador João Guilherme Bastos, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.

YouTube reitera regras

Os dados da Novelo Data indicam que outros cinco canais bolsonaristas podem ser alvos de remoções e bloqueios se infringirem as regras da plataforma nas próximas semanas. É o caso da médica Roberta Lacerda, que já teve seu perfil excluído do Twitter por compartilhar mensagens falsas sobre a vacina contra a Covid-19. A conta já soma três remoções entre janeiro e fevereiro. Em tese, uma nova remoção pode levar ao banimento da plataforma.

Também está sujeito a punição o canal dos médicos Albert e Carla Dickson, defensores do uso de ivermectina contra a Covid-19. A conta teve dois vídeos sobre o assunto removidos desde janeiro. Outro exemplo é o canal bolsonarista Folha Política, que teve dois vídeos excluídos no fim de dezembro. Em outubro de 2021, o próprio presidente Jair Bolsonaro ficou impedido de publicar por sete dias.

Sócio da Novelo Data, Guilherme Felitti acrescenta que há necessidade de mais transparência nas normas de combate à desinformação:

— Fica difícil entender por que esses canais não são punidos ou saem do ar, se existe outra interpretação dessas regras, porque o YouTube não detalha essa informação. Outro ponto é que a gente não sabe exatamente o que levou à exclusão desses vídeos. O YouTube, quando exclui um conteúdo, apresenta informações genéricas.

Em nota, a plataforma não tratou dos casos específicos relatados e disse que os conteúdos precisam seguir as diretrizes: “Contamos com uma combinação de sistemas inteligentes, revisores humanos e denúncias de usuários para identificar material suspeito”, disse o YouTube. Flávio e Malafaia não responderam.

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MOBILIZAÇÕES DAS POLICIAS ESTIMULAM CANDIDATURAS DE GOVERNADOR E SENADOR

Levy Teles, O Estado de S.Paulo

Mobilizações policiais por melhorias nas condições salariais e de trabalho e paralisações ressurgiram pelo Brasil a sete meses da eleição presidencial. O recrudescimento dos movimentos das forças de segurança nos Estados deverá ter reflexo nas disputas deste ano. O Estadão identificou, até o momento, pelo menos 11 possíveis candidatos com origem nas polícias Civil e Militar e nas Forças Armadas nas eleições majoritárias – a governo do Estado e ao Senado.

A Região Nordeste tem a maior parte dos nomes (6), com destaque para o Ceará, onde Capitão Wagner (PROS) – que foi derrotado na disputa pela prefeitura de Fortaleza, em 2020, numa votação parelha – deverá se candidatar ao governo do Estado. A expectativa é de que Wagner polarize a eleição contra o candidato do grupo do PT/PDT, que terá o apoio do atual governador, Camilo Santana (PT).

No Estado, a outra candidatura policial é a do vereador de Fortaleza Inspetor Alberto (PROS), que deverá concorrer ao Senado. Ex-policial civil, Alberto é simpático à pauta bolsonarista, posa com ministros do governo em fotos e tem o apoio de líderes aliados ao Palácio do Planalto.

Em 2020, um motim de policiais militares no Ceará levou a episódios de violência – o senador e ex-governador Cid Gomes (PDT) foi atingido por dois tiros quando tentava invadir o 3.º Batalhão da PM em Sobral com uma retroescavadeira. Oito PMs foram excluídos da corporação e mais 351 policiais identificados como participantes do motim respondem a processos administrativos disciplinares.

O governador de Roraima, Coronel Marcos Rocha (PSL), é o único entre os ex-policiais que vai disputar a reeleição ao Executivo estadual. Além de Ceará e Roraima, candidaturas ligadas às forças de segurança e às Forças Armadas devem ser lançadas em Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Goiás e Rio Grande do Sul – neste Estado, o atual vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, será candidato ao Senado pelo Republicanos.

Pauta federal

É na categoria de ex-policiais, porém, que está a grande maioria das pré-candidaturas majoritárias. Vereador em Maceió, Delegado Fábio Costa quer se candidatar ao Senado. Para isso, deverá deixar o PSB. “Já fui bombeiro militar e agora sou delegado”, observou. “Estou tendo que dialogar com personagens da política para conseguir viabilizar.”

O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, afirmou que 2018 representou um ponto de inflexão para a classe policial – que mantém olhos atentos à Câmara dos Deputados. “O lugar político de excelência das polícias até 2018 eram as Assembleias Legislativas, porque é onde está o dia a dia da agência da polícia”, disse Lima. Depois, segundo o pesquisador, “as associações perceberam que muitos dos obstáculos criados na modernização da gestão da segurança, das condições de trabalho, eram temas de pauta federal”.

Na avaliação de Lima, no Congresso é possível também defender uma agenda de costumes predominantemente conservadora. “Não é nenhuma novidade que policiais tenham uma aderência maior aos temas conservadores. É algo observado globalmente.”

De acordo com levantamento do 14.º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 25.452 policiais e integrantes das Forças Armadas foram candidatos entre 2010 e 2020; 87,6% dos candidatos nas eleições de 2020 são vinculados a partidos de direita e centro-direita. Ainda segundo o estudo, até 2018, 1.860 foram eleitos, e, em toda a década, 94,5% dos candidatos eram homens. Nas eleições de 2018, 32 deputados federais e quatro senadores foram eleitos e passaram a compor a representação da categoria no Congresso.

Classe

O deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) afirmou que a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018, impulsionou vitórias na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas. Segundo ele, porém, a participação política dos policiais não está necessariamente atrelada a Bolsonaro. “A politização dos profissionais de segurança é um processo de organização da classe”, disse Gonzaga.

Nos últimos dois meses, houve movimentos de paralisação de forças da Polícia Civil ou Militar em pelo menos três Estados: Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Norte, com pressões intensas na Paraíba e em Sergipe.

Há uma semana, cerca de 30 mil manifestantes estiveram em assembleia-geral em Belo Horizonte e deflagraram paralisação policial no Estado – o movimento foi considerado “referência” por associações de praças da PM e por sindicatos da Polícia Civil pelo País.

Em Sergipe, uma mobilização que já durava mais de um ano indicava uma possível formação de greve estadual. Antes da realização da assembleia-geral que estava marcada para a quinta-feira passada, líderes do movimento se encontraram com Gonzaga, uma das principais vozes do movimento em Minas. Tanto em Sergipe como em Minas, os Tribunais de Justiça estaduais determinaram a impossibilidade de paralisação, com multa aos movimentos em caso de continuidade.

Para entender

Legislação

Paralisações e protestos contra superiores são vedados pela lei a policiais e a bombeiros militares. De acordo com o regulamento, podem configurar motim.

Supremo

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que servidores que atuam na área da segurança pública (incluindo agentes civis) não podem entrar em greve.

Constituição

Em Minas Gerais, o próprio comandante-geral da PM, Rodrigo Sousa Rodrigues, deu aval à participação de policiais da ativa no protesto por reajuste salarial. A manifestação teve adesão até de policiais da ativa e armados. A Constituição proíbe atos com participantes armados.

Reflexo

Especialistas em segurança voltam a temer que o movimento em Minas reacenda a onda de motins no Brasil. Mobilizações de integrantes das forças de segurança também devem ter reflexo nas eleições, com candidaturas ligadas às polícias Civil e Militar e às Forças Armadas.

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DEEPFAKES COM LULA, MORO E DILMA ALERTAM PARA RISCO NAS ELEIÇÕES

Da Agência Estado, via Correio Braziliense

Cada vez mais sofisticadas, técnicas de deepfake e deepdubs colocam na boca de pré-candidatos à Presidência frases que, na verdade, eles nunca proferiram. Muitas vezes, em lugares onde eles também não estiveram. Exemplo recente é um vídeo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dizendo amar paçoca e abrindo um pote do doce, conteúdo que ganhou projeção nas redes nesta quinta-feira, 24. O “detalhe”, como a própria postagem explica, é que o líder petista não falou nada daquilo, e tudo não passou de uma farsa criada em computador.

O criador da peça, o jornalista e pesquisador de deepfake Bruno Sartori, relata na publicação ter usado a tecnologia para inserir o rosto de Lula no corpo de outra pessoa e transferir o timbre de sua voz para a fala original. Ele já compartilhou outros exemplos em seu perfil, como um vídeo que simula o pré-candidato Sérgio Moro (Podemos) recitando um poema satírico e um homem falando com a exata voz da ex-presidente Dilma Rousseff. Procurado pela reportagem, Sartori não quis se manifestar.

Deepfakes, como o nome sugere – algo como “mentira profunda”, em tradução livre -, é uma categoria de farsa que vai além das fake news tradicionais. Diferentemente do que ocorre nas montagens tradicionais, os personagens retratados aparecem em vídeos e podem gesticular, falar e inclusive imitar a voz das vítimas – nesse caso, a técnica se chama deepdub.

Os conteúdos são feitos por meio de inteligência artificial. Para desavisados, é muito difícil distinguir o que é real do que é falso – uma dica é se atentar para certa estranheza nas expressões faciais, discrepâncias no tom da pele, entre outras minúcias.

Segundo o pesquisador Anderson Soares, chefe do centro de inteligência artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG), dois fatores criam o ambiente perfeito para a disseminação de deepfakes. Primeiro, o avanço das ferramentas digitais e o amadurecimento da tecnologia nos últimos anos. Segundo, o fato de haver vídeos e áudios disponíveis em abundância para que o computador recolha os dados de aparência e voz de que precisa.

Soares afirma que a tendência é que a técnica se popularize e passe a estar disponível mesmo para quem não trabalha com tecnologia nos próximos anos. Via aplicativo de celular, por exemplo – alguns já existem, como o Reface App. “Em breve, qualquer pessoa vai conseguir produzir um vídeo ou voz falsa, é questão de pouco tempo”.

Entretanto, o pesquisador argumenta que o melhor caminho não é proibir o uso da ferramenta. Ela pode ser útil para melhorar a dublagem de filmes, por exemplo, e bani-la afetaria a competitividade do Brasil no ramo da tecnologia. “O caminho é que os órgãos competentes tenham agilidade para coibir práticas antiéticas, sobretudo no que diz respeito às eleições, e a sociedade precisa ser educada para reconhecer vídeos falsos”, afirma.

Na campanha eleitoral de 2018, o então candidato a governador João Doria (PSDB) foi alvo de uma deepfake. À época, passou a circular nas redes um vídeo com cenas de sexo envolvendo seis mulheres e um homem, que na gravação foi identificado como sendo o tucano. O material foi explorado por adversários para enfraquecê-lo na disputa.

“Hoje eu vi um vídeo vergonhoso nas redes sociais, que foi produzido por alguém que só quer o meu mal e o mal da minha família. Uma produção grotesca. Fake news. Pedi a um perito criminal que verificasse essas imagens. Pedi também medidas judiciais e criminais contra os autores desse vídeo. Lamento muito que a campanha em São Paulo tenha chegado a esse nível de ferir a nossa família”, disse o tucano naquela ocasião.

Não é difícil, hoje, encontrar esse tipo de montagem envolvendo políticos na internet. Um caso famoso foi o que simulou o presidente Jair Bolsonaro (PL) elogiando as vacinas. Outro mostra o rosto do presidente no personagem mexicano Chapolim Colorado. Também há um exemplo em que o chefe do Executivo canta a canção “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho; Silvio Santos já apresentou o Jornal Nacional; Lula já cantou uma música de Pabllo Vittar; e até o ex-presidente americano Donald Trump já chamou Bolsonaro de “Bolsolino”.

Questiona sobre como se prepara para enfrentar vídeos falsos, a equipe de Lula afirmou que não comenta estratégias de comunicação.

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A ESQUERDA BRASILEIRA E OS ABISMOS DE DUAS ESQUINAS

Paulo Fábio Dantas Neto, Democracia Política

O fato incontornável da semana, candidato a ter longa vida, é a agressão militar da Rússia contra a Ucrânia, ato cujas causas e consequências cabe a análises especializadas detectar e estimar e cujo alcance destrutivo, nos sentidos político e humanitário, nenhum agente que exerça ou aspire exercer autoridade política, em qualquer lugar do mundo, tem direito de ignorar ou relativizar. É um novo desafio que se apresenta aos democratas brasileiros, já às voltas com uma devastação promovida por um autocrata interno. Palavras e gestos escolhidos para uma situação podem repercutir sobre a outra.

É imperativo que analistas voltados à compreensão dos cenários anterior e posterior à agressão russa usem informação qualificada, multilateral, o mais isenta possível de vieses e produzam interpretações equilibradas, dotadas de senso de objetividade. Tão imperativo quanto isso é não faltar, por outro lado, em declarações de líderes, partidos e outros agentes da política, a capacidade de se colocar, com clareza e senso de urgência, em oposição a um gesto político-militar imediato e concreto que liquida, por decisão unilateral do governo de um país, instituições e vidas humanas que importam a todos, seja no sentido da solidariedade entre indivíduos e entre povos, seja no da autopreservação de cada pessoa, ou país. São igualmente problemáticas, numa hora dessas, a contaminação ideológica de quem se propõe a ocupar o lugar de analista e a ausência, no caso de agentes políticos, da disposição subjetiva de encarar a agressão militar sob a orientação primordial de valores.

Nenhuma posição política realista precisa ou deve ser cancelada em emergências assim. Ao contrário, nessas situações-limite elas são ainda mais requisitadas, porém, o que delas se requer, como uma de suas premissas, é que não confundam uma saudável recusa à ideologia com sua diluição num varejo destituído de causas, o que denota, não política realista, apenas uma política pequena. Daí que a condenação da agressão não comporta meias palavras da parte de quem tem responsabilidade política.

Minha opinião é desprovida de pretensões analíticas do contencioso geopolítico que ora se degenera em guerra. Faltam-me informação e reflexão sistemática sobre o assunto para estar apto a tais pretensões. Mas me é possível analisar, sim, ainda que evitando assertivas fortes, a conduta de atores politicamente responsáveis, no Brasil e no exterior. Em particular, a de forças que historicamente se autodefinem como esquerda, para as quais guerra e paz – como par de opostos – constituem, por tradição, um tema político nobre, que se mantém perene após o eclipse factual da oposição entre capitalismo e socialismo. Além de nobre, tema decisivo para a esquerda brasileita, face à hipótese provável dela voltar a ser governo.

Escapa a semileigos como eu, em relações internacionais, uma plena compreensão das razões mais ou menos determinantes pelas quais a derrocada, há mais de três décadas, do chamado socialismo real – da qual o fim da URSS foi o recibo de quitação – não levou, apesar de esforços feitos nesta direção, à desmilitarização da Europa. E das razões pelas quais não houve conversão mais relevante de recursos de estados nacionais e organismos multilaterais empregados em objetivos militares, em estratégias globais de caráter econômico, social, ambiental ou cultural. Como a ideologia não pode suprir esse déficit cognitivo, a discussão segue enevoada e convoca a política para não permitir que a controvérsia derive em guerra durante o tempo em que impera. A democracia é o melhor recurso que a política pôde até aqui oferecer ao mundo para cumprir sua missão de promover convívio pacifico aos humanos do presente, sem ofender a memória dos que já morreram, nem comprometer a vida de gerações futuras.

A democracia associada a instituições liberais não é um imperativo moral que possa ser imposto, a fórceps, a sociedades que jamais a experimentaram, como se pode dizer, sem exagero, que é o caso da sociedade russa. Ela não é uma crença universal, mas é uma fórmula política universalizável. Em vários países em que se firmou também como crença, tornou-se uma evidência institucionalizada, possível de ser oferecida, como alternativa de organização política e como dinâmica processual para resolução de conflitos, a sociedades submetidas a autocracias. O método desse oferecimento precisa ser, no entanto, o mais próprio da política democrática, o da persuasão e da participação políticas, continuamente praticadas em sociedades plurais.  É a democracia ganhando força pelo exemplo, mais que pela coerção.

O arranjo liberal-democrático é um achado histórico que vigora numa parte do mundo, sob sério risco. Analistas e pensadores diversos apontam uma crise da fórmula, mas quase nenhum nega a sua vigência. As raízes e saídas da crise, bem como as chances da fórmula se manter vigente são temas controversos. Na prateleira há explicações e prognósticos úteis a vários credos políticos. Mas há sempre uma escolha política a fazer entre agir para deter ou para aprofundar essa crise. Escolha limitada pelas famosas condições objetivas tão evocadas em clássicos discursos da esquerda vinculada ao tronco principal da tradição marxista. Mas ainda assim escolha, mais ou menos assumida, ou dissimulada.  

O gesto agressor do regime de Vladimir Putin induz-nos à explicitação de uma escolha política. Ser institucionalmente conservador diante de contextos onde a democracia liberal prevalece, reformador onde está constrangida por instituições iliberais e subversivo onde simplesmente ela inexiste ou foi revogada por atos arbitrários internos ou de agressão externa, como pode vir a ocorrer na Ucrânia. Essa escolha implica respaldar esforços ocidentais para dissuadir o governo russo de prosseguir na agressão; em confrontar argumentos nacional-militaristas de Putin que conferem ao interesse nacional russo um suposto direito de produzir efeitos negativos globais ao agredir “preventivamente” outro país, enquanto cala, autocraticamente, a oposição interna; por fim, implica em solidariedade à Ucrânia e à resistência dos que, naquele país, se opuserem à agressão em curso, apontando sempre a diplomacia e a pressão política como vias adequadas para detê-la.  O que por sua vez implica, para não ser discurso oco, aceitar as consequências de tal opção, entre as quais a principal é que sub ótimos são o céu que a limita. Respaldar a aliança das democracias ocidentais não resolve os seus problemas. Enfrentar Putin não anula seu poder. A solidariedade à Ucrânia e seu povo não anula o extremismo do seu atual governo.

Essa escolha política também não expressa opção ideológica ou “cultural” pelo Ocidente ou por esse ou aquele tipo de organização econômica e social. Expressa alinhamento com a paz como valor e com a democracia, como instituições e conduta. Isso, em boa hora, tem orientado posicionamentos de líderes e partidos de esquerda ocidentais para os quais seria bom que a esquerda brasileira se voltasse em busca de referência e convergência. Refiro-me, como exemplos, à posição do primeiro-ministro português António Costa, à declaração pública do seu partido, o PS, bem como à da Internacional Socialista.

Observadores agudos do quadro internacional hão de analisar essas e outras falas e textos, indo além da recepção esperançosa que lhes dedico. Mais especialmente ao pronunciamento do presidente chileno Gabriel Boric, firme, simples e abrangente, dirigindo-se, sem omissões e sem excessos ou contorcionismos verbais, aos pontos cruciais: “Rusia há optado por la guerra como medio para resolver conflictos. Desde Chile condenamos la invasion a Ucrania, la violación de su soberania y el uso ilegítimo de la fuerza. Nuestra solidaridad estará com las víctimas y nuestros humildes esfuerzos com la paz”.    

É ocioso comentar o flagrante contraste das palavras do presidente do Chile com o silêncio no mínimo leniente do presidente brasileiro, que sucedeu a suas palavras e gestos públicos de simpatia dirigidos a Putin. Mais significativo é comparar a fala do jovem líder chileno com a do experimentado líder popular da esquerda brasileira que, conforme indicações de todas as pesquisas, é o político com mais possibilidades de livrar o país da hipótese de reeleição do extremista. Pode-se dizer, sem dúvida, que as posições dos dois líderes da esquerda sul-americana têm sentidos gerais convergentes.  Leiamos Lula: “É lamentável que na segunda década do século 21, a gente tenha países tentando resolver suas divergências territoriais, políticas ou comerciais através de bombas, tiros e ataques, quando deveria ter sido resolvido em uma mesa de negociação. Ninguém pode concordar com guerra, ninguém pode concordar com ataques militares de um país sobre outro“. Convergindo no sentido geral, as duas declarações em tuíte distinguem-se, pela presença (Boric) e ausência (Lula) do termo invasão na descrição do fato ocorrido. Também pelo anonimato dos protagonistas (Rússia e Ucrânia), no caso de Lula e pela nomeação dos bois, no de Boric.

Entre o tom explícito do chileno e o genérico do brasileiro poder-se-ia ver o efeito da maior experiência do segundo, seu maior traquejo na lida com as distinções entre política e diplomacia. Essa interpretação seria, no entanto, benevolente com Lula. Em outros momentos da mesma comunicação, divulgada por Leonardo Sakamotto, o insuspeito colunista do Uol, em 24.02, fica claro que a diferença não é o que falta, mas o que sobra na análise de Lula, em relação ao posicionamento político de Boric. Fala Lula: “A gente está acostumado a ver potências fazendo isso de vez em quando sem pedir licença. Foi assim que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque. Foi assim que a França e a Inglaterra invadiram a Líbia. E é assim que a Rússia está fazendo com a Ucrânia”. Aí estão os nomes do boi agressor e do boi agredido, porém, diluídos em meio a outros bois, que pastaram em outros contextos.

Os excessos dispersores do foco não são os únicos a retirar da fala de Lula o caráter de posição política orientada por valores diante da emergência dramática de uma crise atual, para torná-la uma incursão no mundo da estratégia politicamente orientada para o médio e o longo prazos, na qual presente, passado e futuro fundem-se em ritmo de tese. Para tanto, contribui também, na mesma fala, um discurso crítico da ONU que parece remetido ao contexto em que ele governou o Brasil, ou mesmo, mais atrás, o da eclosão, em plena guerra fria, do movimento dos não-alinhados a lembrar à ONU que a geopolítica do mundo mudara no sentido de congelá-la. Como entender a evocação, em flashback, neste momento, de uma política alternativa, embora não antagônica, à do globalismo liberal, que Bolsonaro xinga e Putin desafia? É possível que, em momentos não críticos, ela conte com simpatia e até parceria de Boric. Logo, não se trata de ver entre ambos os líderes, uma divergência de fundo. Mas a que atribuir a recusa de Lula a traduzir suas intenções em política externa em tática de efetivo e decidido engajamento contra o atual agressor da paz e ao lado do presente agredido? A pergunta requer olhar o que se dá na esquerda brasileira, mormente no PT, retaguarda que Lula pode interpelar, não confrontar,

É fato que se detecta no Brasil disposição semelhante à de Boric, por parte de algumas lideranças de esquerda, como se dá no caso do deputado carioca Marcelo Freixo, que certamente não é voz solitária. Frustram, por outro lado, e até preocupam as dificuldades do maior partido da esquerda brasileira em posicionar-se como a hora exige de agentes políticos que não podem se refugiar, como se analistas fossem, nas ambiguidades certamente reais e sérias que uma situação complexa envolve. Esse dilema entre se posicionar politicamente ou escapar pela análise é que parece acossar o ex-presidente Lula. O modo como enfrentará essa esquina é de alto interesse público no momento em que sob seus ombros se depositam as expectativas de muitos brasileiros que querem ou precisam sair do beco, sem sair do país.

Produz algum alívio saber que uma desastrada nota da bancada do partido no Senado – que criticava e responsabilizava principalmente os EUA e a aliança ocidental e secundariamente a Rússia, desviando o foco do caso concreto que tensiona o mundo – foi revista e tirada de circulação a tempo. Bom saber que há no PT anticorpos contra atrações ideológicas típicas de esquerda negativa, seja a saudade da guerra fria, seja a simulação ideal de uma polaridade norte/sul.  Mas fica evidente ali também a presença relevante de posições que confundem alvos num momento tão delicado da política mundial e brasileira. Um mero ponto intermediário entre o olhar grudado no retrovisor e a inspiração no que se desenha como esquerda no horizonte do nosso século ainda jovem não basta porque pode, no máximo, produzir declarações genéricas que podem ser anódinas num contexto em que até o Talibã prega que se resolva a crise “por meio de diálogo e meios pacíficos”. Antes de ceder a piadas é preciso pensar que não basta pregar paz, tem que participar e se engajar, não cumprir tabela e depois torcer contra, entre amigos. 

Sem agora mais me referir a líderes ou partidos específicos, registro a percepção, fora da direita autoritária (onde esse tipo de fenômeno é, a princípio, mais esperado) de uma admiração contida pela performance guerreira de Putin em áreas gauche de nossa elite política e da nossa intelectualidade. O traço é determinante na virtual extrema-esquerda (insignificante no Brasil) mas afeta, de viés, também a esquerda política, mais ainda em suas conexões universitárias, onde incide um esquerdismo doutrinário superficialmente intelectualizado. Mesmo quando se vê como “centro-esquerda”, ele segue refém da mentalidade bipolar dos tempos da guerra fria, agora aplicada a novas polaridades. A antiga atitude política anti-imperialista recicla-se pela denúncia de um “neo-liberalismo” elástico a ponto de estigmatizar todo o campo liberal, pressionando a porta do edifício liberal-democrático que é hoje o grande alvo de Putin. Mas se o olhar ousar uma penetração mais funda cogitará que a admiração pelo seu lado de “estadista” abriga reminiscências ideológicas que independem do antiamericanismo e da aversão “cultural” ao capitalismo e ao Ocidente. Pode-se ver aversão a pecados mundanos da política liberal-democrática, desfavoravelmente comparada à potência de um líder forte para promover justiça. 

Como se não nos bastassem os ataques que a democracia sofre hoje no Brasil, um problema adicional seria as cadeiras de geopolítica renderem-se ao pontificado de autocratas militaristas como Putin. Será uma lástima se, na atual quadra crítica, parte relevante da esquerda brasileira admitir retroceder à lógica e à retórica da guerra fria. Nessa hipótese, ela caberá como uma luva na máxima do poeta Samuel Coleridge, da qual Roberto Campos retirou a expressão-título do seu famoso livro “Lanterna na Popa”: “(…) a paixão cega nossos olhos e a luz que nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás”. Para personagens como Roberto Campos, um liberista tido como radical, adversário ardoroso do socialismo e desconfiado da democracia, a esquerda sempre contribuiu para esse atraso em que via o Brasil mergulhado. Diagnóstico certamente exagerado, até injusto, mas que passará a valer como profecia se, numa esquina como a de hoje, a nossa esquerda não puder olhar para o mundo das possibilidades democráticas, do qual ela própria surgiu, para receber algum oxigênio.

Putin e Bolsonaro, noves fora as não poucas nem pequenas distinções entre ambos, precisam ser encarados como símbolos atualíssimos de um mesmo desafio às possibilidades da política como via de resolução de conflitos. Sendo guerreiros da autocracia como a titular da última razão, não se pode contemporizar ou flertar com os abismos que abrem, para aguardar suas vítimas no além das esquinas.

*Cientista político e professor da UFBa

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RISCO DE ANTISMO

Cristovam Buarque, Blog do Noblat, Metrópoles

O setor de relações internacionais do PT cometeu o erro de apoiar a invasão da Ucrânia pela Rússia. Esta posição se explica pelo antiamericanismo que caracteriza a visão do mundo dos petistas. Se a Rússia enfrentava os Estados Unidos, então ela estava certa. Este é o perigo do “antismo”: pensar contra sem levar em conta as especificidades que ocorrem em cada momento, sem considerar que o mundo não é apenas branco e preto, nem percebendo as mudanças que acontecem.

Da mesma forma que o antismo do PT leva a erros deste tipo, as forças democráticas têm errado, ao longo de meses, por verem a política Brasília sob o antipetismo. Sabem do risco da reeleição de Bolsonaro, mas se negam a barrar esta reeleição em aliança com o PT. Deixam também de perceber que o PT e Lula de hoje podem ser diferentes do que eram há alguns anos atrás.

Foi este antismo que levou forças democráticas a se recusarem a incluir Lula e o PT na composição de uma frente nacional contra Bolsonaro. A concepção da terceira via como uma alternativa “nem nem” poderá levar à vitória do Bolsonaro, em função do voto nulo inspirado pelo antipetismo.

Felizmente, o PT parece ter reconhecido o erro de seu setor internacional e mudado de posição denunciando a invasão da Ucrânia que agora só conta com o apoio de Bolsonaro. Felizmente também, PT e Lula percebem que para derrotar Bolsonaro e depois governar precisam de aliança com outras forças e outras visões do mundo. O PT começa a deixar de antismo contra tudo que não é PT. Está em tempo das forças democráticas perceberem que não foram capazes de construir uma alternativa eleitoralmente viável e que seu divisionismo, movido pelo antipetismo, pode ser a causa da tragédia de mais quatro anos do atual governo legitimado pelo apoio voto popular.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

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"QUALQUER CANDIDATURA QUE FURE A POLARIZAÇÃO SAIRÁ VITORIOSA"

Michelle Portela, Correio Braziliense

“Qualquer candidatura que fure a polarização sairá vitoriosa”, diz Eliziane Gama

Líder da Bancada Feminina no Senado, a senadora Eliziane Gama também almeja um papel relevante na eleições, de preferência em uma chapa majoritária. Ela espera a definição da federação que o Cidadania irá compor para saber o seu destino, mas não esconde que aceita a ideia de ser candidata à vice-presidente da República. Confira a entrevista com a senadora.

Quais as preocupações das senadoras nas eleições?

Temos certa unidade em relação aos temas que nos tocam, como violência contra a mulher, mercado de trabalho, igualdade na representação política, mais mulheres na política, enfim, teses históricas. Acredito que, neste ano, precisamos intensificar o debate sobre participação das mulheres nas chapas majoritárias. Atualmente, temos uma governadora e sete vices, mas podemos ousar. E, com isso, insistir para ampliar a nossa participação no Congresso Nacional.

O que está sendo feito para impedir candidaturas laranjas de mulheres?

Temos problemas em relação a isso. Mas, se compararmos as candidaturas laranjas masculinas e femininas, na verdade, nem podemos comparar. Mas precisamos ampliar esse debate comprometendo os homens, sensibilizando, evitando que retirem mulheres desses espaços. E temos os efeitos da cota de mulheres e do Fundo Eleitoral, que agora destina recursos específicos para campanhas de mulheres. Por meio desse esforço, o número de deputadas dobrou na Câmara, e tivemos maior representação também no Senado. Isso mostra que as políticas públicas estão no caminho certo. Queremos desdobrar esses resultados com mais deputadas estaduais, federais e senadoras. E, como eu disse, ampliar a presença de mulheres em chapas majoritárias.

A senhora pretende ser uma dessas representantes?

Meu partido tem candidato a presidente, o senador Alessandro Vieira. No entanto, tenho colocado meu nome à disposição e estarei aí para defender. É importante participar. Estou na política há 15 anos. Percebo o quanto isso repercute em outras mulheres também. Quanto mais espaço você ocupa, mais responsabilidade se tem no que representa. Lógico que também temos a candidatura da Simone (Tebet) à frente, e que seria muito interessante ver duas mulheres numa chapa majoritária.

E quem seria o presidente ideal numa chapa com a senhora?

Estamos discutindo a federação com outros partidos. Temos algumas pessoas do campo democrático que, tenho certeza, poderiam assumir a presidência. Ciro Gomes (PDT) é bastante viável. Temos conversado com o PSDB, partido com o qual mais temos chance de federar, e também acho uma boa candidatura. Não podemos esquecer do Moro. Temos de construir uma candidatura que unifique o campo democrático e seja capaz de vencer a polarização entre Lula e Bolsonaro.

Essa via tem chance de vencer as eleições?

Acredito imensamente que qualquer candidatura que fure a bolha da polarização sairá vitoriosa. Bolsonaro só vence se for ao segundo turno com Lula, e vice-versa. Temos de chegar ao segundo turno unidos e construir a candidatura da vitória.

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domingo, 27 de fevereiro de 2022

O BRASIL E A CRISE DA UCRÂNIA

Almir Pazzianotto, OS DIVERGENTES

A agressão à Ucrânia pela Rússia, que se aproveita da desproporcional superioridade de forças militares, coloca o Brasil na crise sob governo de presidente confuso, omisso, despreparado, sedento de poder, embora ignorante em assuntos de geopolítica e de conflitos bélicos mundiais. Jair Bolsonaro, capitão paraquedista reformado, não demonstra familiaridade com bons livros. Por palavras e atos denuncia elevado grau de ignorância. Não se lhe pode negar, todavia, a postura pragmática voltada a tirar vantagens em todas as oportunidades, mesmo as infelizes.

A demonstração de simpatia a Vladimir Putin, o ditador que se preparou longos meses para invadir a Ucrânia, país cujas forças armadas são numericamente inferiores às russas em homens, armas e equipamentos, ficará na História do nosso País como mancha indelével. Seria o mesmo que Getúlio Vargas fosse prestar vassalagem a Hitler em Berlim, às vésperas da invasão da Polônia, da Bélgica, da França e do bombardeamento da Inglaterra.

Apesar da distância de milhares de quilômetros do campo de batalha, o Brasil não pode se considerar livre de ser afetado pela política expansionista da Rússia, que faz da Ucrânia apenas a primeira vítima.

O apetite insaciável do ex-integrante da KGB é comparável ao de Josef Vissarionovich Stalin (1879-1953), o abominável criminoso que se aproveitou do final da segunda Guerra Mundial para avançar sobre o leste europeu e transformar pela violência todos os vizinhos em satélites da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), situação que iria perdurar até a queda do Muro de Berlin.

A Rússia jamais foi democracia. A derrubada do Czar Nicolau II (1894-1917), pela Revolução Bolchevista de 1917, liderada por Lenin, Vladimir Ilych Uyanov (1870-1924) e Trotsky, Leon Davidovich (1879-1940), resultou na imposição de sangrento regime comunista, do qual jamais o povo russo se libertou.

Putin dá vasão a impulsos autoritários quando o mundo mal sai da pandemia do coronavírus. Sente-se beneficiado pela debilidade da Organização das Nações Unidas (ONU), presa a compromissos assumidos em abril de 1946 quando foi fundada, e que lhe não permitem expulsar a Rússia, por integrar o Conselho de Segurança de maneira permanente, com direito de veto sobre a deliberação dos demais.

Desacredito da possibilidade de intervenção das forças da Organização do Tratado do Atlântico e duvido da eficácia dissuasória de sanções econômicas decretadas pelos países ocidentais.

A invasão da Ucrânia, Estado soberano, cultural e politicamente mais próximo do ocidente, talvez seja o primeiro passo na escalada de violência destinada a anexar outros países à órbita de influência da Rússia. Polônia, Suécia e Finlândia poderão ser os próximos alvos. A questão diz respeito ao Brasil, pois o mundo globalizado, informatizado, dos submarinos, porta-aviões, mísseis nucleares e aviões supersônicos, desconhece distâncias e fronteiras.

Resolvida a situação na Europa, Putin voltará os olhos para a América do Sul, onde conta com a Venezuela para lhe servir como ponto de apoio. Na América Central tem como aliados Cuba e a Nicarágua, ditaduras controladas pelo Partido Comunista.

O presidente Jair Bolsonaro não está à altura do momento crítico, quando entram em jogo valores democráticos sob a ameaça do ditador discípulo de Stalin. De que lado ficarão as Forçar Armadas, incumbidas da defesa da Pátria e da garantia dos poderes constitucionais?

O comportamento de Jair Bolsonaro, que a todo momento demonstra estar desejoso de tumultuar o processo eleitoral, na hipótese de perder as eleições de outubro, o coloca na esfera de influência de Vladimir Putin.

Quem diria que nossa extrema direita encontraria argumentos para servir aos interesses da extrema esquerda, liderada pela Rússia?

Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho

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BRASILEIROS NA UCRÂNIA: 'SE VIREM'

Editorial O Estado de S.Paulo

Eis o bolsonarismo em sua essência: Jair Bolsonaro não governa – descumpre as obrigações do cargo –, mas alardeia, nas redes sociais, informação falsa. No dia em que a Rússia iniciou seus ataques contra a Ucrânia, o presidente Bolsonaro disse, no Twitter, estar “totalmente empenhado no esforço de proteger e auxiliar os brasileiros que estão na Ucrânia”. Ainda assegurou que a embaixada em Kiev estava aberta e pronta para auxiliar “os cerca de 500 cidadãos brasileiros que vivem na Ucrânia e todos os demais que estejam por lá temporariamente”.

No entanto, a afirmação de Bolsonaro era falsa. Quem entrou em contato, na quinta-feira, com a embaixada do Brasil em Kiev recebeu informações bem diferentes. Era desaconselhado a ir até a representação diplomática e informado de que não havia como assegurar uma saída do país em segurança, o que foi confirmado pelo Itamaraty, em Brasília. Ou seja, não havia nenhum plano para proteger ou retirar os brasileiros da Ucrânia.

Conforme relatou o Estado, dois brasileiros que pediram auxílio para sair da Ucrânia receberam de um diplomata esta orientação: “Se virem”. Além de inusitada, a mensagem é rigorosamente desesperadora. O órgão do Estado brasileiro que deveria prover proteção a seus cidadãos reconhece seu despreparo diante da situação que, longe de ser uma surpresa, era há algum tempo uma possibilidade não desprezível. Basta ver que outros países já vinham retirando seus nacionais da Ucrânia, entre outras medidas.

A orientação “se vire” não é muito diplomática, mas contém, eis a dura realidade, uma profunda verdade. Diante do padrão de comportamento bolsonarista, trata-se de um conselho realista. Se depender de Jair Bolsonaro, não haverá Estado planejando e cuidando das pessoas. Se depender do bolsonarismo, cada um estará sozinho e desprotegido, abandonado às suas próprias forças. Foi assim com as enchentes na Bahia em janeiro. Foi – e continua sendo – assim durante a pandemia.

Não é apenas irresponsabilidade, o que já seria grave. O bolsonarismo debocha do País e dos brasileiros. Há evidentemente despreparo e ignorância, mas é também descaso, indiferença. Nada é levado a sério. Em sua visita a Moscou, Jair Bolsonaro chegou a dizer que, “coincidência ou não, parte das tropas (russas) deixaram a fronteira”, após o seu encontro com Vladimir Putin. A situação era de tensão, com risco de guerra, mas o presidente Bolsonaro preferiu fazer graça, difundindo informação falsa. E nada fez para proteger os brasileiros na Ucrânia.

A Presidência da República tem responsabilidades. Omissões do chefe do Executivo federal podem causar problemas graves, muitas vezes colocando brasileiros em risco de morte. Jair Bolsonaro segue, no entanto, alheio a tudo isso, achando-se autorizado a leviandades. Na visita a Moscou, disse que “Putin é uma pessoa que busca a paz”. Descaso com a verdade, descaso com as pessoas.

Que, apesar de Bolsonaro, o Estado brasileiro possa, com urgência, oferecer proteção e um plano de saída aos brasileiros na Ucrânia.

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sábado, 26 de fevereiro de 2022

QUANDO O CARNAVAL CHEGAR

Marcus Pestana, Congresso em Foco

Em 1972, tivemos o lançamento do musical de Cacá Diegues “Quando o Carnaval Chegar”, estrelado por Nara Leão, Maria Bethânia, Hugo Carvana, Chico, entre outros. Na trilha sonora destaca-se a música tema, onde Chico Buarque diz: “Quem me vê apanhando da vida, duvida que vá revidar. Tou me guardando pra quando o carnaval chegar”, “Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar. Tou me guardando pra quando carnaval chegar”. Parece até uma alegoria da eterna espera brasileira pelo dia em que a alegria do carnaval abraçará em definitivo a maioria da população do país, superando a surra diária e a alegria abafada e adiada.

Este ano a Mangueira e a Portela não irão pra avenida, não haverá abadás e blocos de Axé e o Galo da Madrugada não varrerá as ruas de Recife, graças à pandemia que nos assola há dois anos. Será um momento de descanso e reflexão. É justo, pois, tentar imaginar o que nos reserva 2022. E certamente, não haverá monotonia pelos sinais que temos até aqui.

Em primeiro lugar, nuvens carregadas ameaçam o cenário internacional. O conflito entre Rússia e Ucrânia poderá ter desdobramentos imprevisíveis. Os EUA e a União Europeia resistem e ameaçam com retaliações crescentes.  A China se alinhou a Rússia e paga pra ver. Obviamente, a tensão crescente terá repercussões no comércio internacional e no fluxo global de investimentos. O Brasil tem na China, EUA e União Europeia seus três maiores parceiros comerciais e ao mesmo tempo compõe o BRICRS, ao lado da Rússia e da China. Nossa atual política externa tem cometido erros primários e todo cuidado é pouco.

Por outro lado, tudo indica que a pandemia chegará ao fim com o avanço da imunização e a COVID-19 se incorporará à rotina dos desafios sanitários.

No plano econômico é de se prever que a inflação cederá a médio prazo, mas a taxa de juros e o desemprego continuarão altos e o crescimento raquítico. Os investimentos devem entrar em compasso de espera, aguardando os desdobramentos políticos das eleições de outubro.

E é aí que mora o perigo. As eleições trazem, como tudo na vida, ameaças e oportunidades. O Brasil necessita urgentemente de estabilidade política e econômica e de um plano de voo de longo prazo, sob pena de continuar patinando no pântano das crises permanentes. Enquanto não superarmos a instabilidade não cuidaremos da verdadeira agenda do século XXI e de preparar o futuro.

Nos últimos dias, a temperatura política subiu, o que é até certo ponto natural a sete meses das eleições presidenciais, mas que pode sair do controle. Os conflitos entre o Palácio do Planalto e o Poder Judiciário foram reciclados. Bolsonaro subiu o tom em palestra organizada pelo BTG, tentando, pela radicalização do discurso, provar que merece mais quatro anos. Lula tenta tranquilizar a sociedade, com movimentos claros em direção ao centro político, revelando estar consciente da gravidade do quadro e que fará um governo longe de retaliações e aventuras à esquerda. Paralelamente, o centro democrático tenta, a duras penas, localizar uma candidatura competitiva que vocalize uma agenda contemporânea, comprometida com a democracia, o desenvolvimento sustentável e o combate às desigualdades.

2022 promete. O importante é que não somos todos atores passivos neste drama. O futuro nascerá das nossas mãos e de nossas escolhas.

*Marcus Pestana, Presidente do Conselho Curador ITV – Instituto Teotônio Vilela (PSDB)        

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