O fracasso do vaticínio bolsonarista sobre as perspectivas do conflito na Ucrânia foi o que de melhor poderia ter acontecido para o front interno da guerra eleitoral do presidente Jair Bolsonaro.
Suas declarações de solidariedade “à busca de Putin pela paz”, feitas uma semana antes do ataque russo à Ucrânia, ganharam competidores à altura.
A deflagração da guerra não apenas trouxe à tona outros posicionamentos estapafúrdios nas fronteiras nacionais, quanto expôs o fracasso de dirigentes estrangeiros que assumiram, de fato, o risco da mediação do conflito.
Nesse ambiente em que todos erram e ninguém tem razão eis que aparece Bolsonaro, às 16h de ontem, no Twitter, dizendo-se empenhado em “proteger e auxiliar” os brasileiros na Ucrânia. Já não tomou partido nem se aventurou na geopolítica, apenas pôs a embaixada em Kiev à disposição dos 500 brasileiros que vivem no país e os que lá estão de passagem. Não tem como ser contra.
Já não se pode dizer o mesmo em relação ao vice-presidente Hamilton Mourão, o primeiro a ombrear com o Bolsonaro de Moscou, ainda que de ponta cabeça. Mourão defendeu o uso da força e disse que se o Ocidente deixar que a Ucrânia caia por terra, Putin prosseguirá até reproduzir a Alemanha hitlerista dos anos 30.
Nem mesmo Joe Biden, maior antagonista de Vladimir Putin no planeta, chegou a tanto. Em pronunciamento na tarde de ontem, o presidente americano voltou a dizer que não reagirá com uso de força ao ataque russo.
Ante a Constituição brasileira que prevê, em seu artigo 4, a defesa da paz e a solução pacífica dos conflitos como princípios das relações internacionais do país, a plateia não terá muita dúvida sobre quem estará jogando dentro das quatro linhas, se o Bolsonaro do tuíte ou o Mourão belicista.
Ao deixar que seu governo falasse pela anódina nota do Itamaraty, Bolsonaro evitou a profusão de porta-vozes que surgiram, por exemplo, no PT. Logo cedo, em entrevista a rádios de Brasília, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou a invasão, ainda que sem citar a Rússia. “É lamentável que na segunda década do século 21 a gente tenha países tentando resolver suas diferenças através de tiros, bombas e ataques quando isso deveria ser resolvido atrás de mesas de negociações.”
Duas horas mais tarde, o ministro Celso Amorim, que disse não ter falado com Lula, afirmou ao Valor ter sido surpreendido pelo ataque russo à Ucrânia – “A Rússia tem preocupações legítimas de segurança, mas nada justifica uma ação militar unilateral. Foi muito grave o que aconteceu”.
Na semana passada, Amorim chegou dizer que o cancelamento da viagem do presidente Jair Bolsonaro à Rússia representaria uma concessão injustificável à pressão americana. Na manhã de ontem, reconheceu o mau passo – “Olhando em retrospecto a sorte não ajudou. Agora o melhor é o Brasil ficar quieto. Condenar a força, apelar ao direito internacional, chamar todos à mesa de negociação e nessa negociação levar em conta os direitos dos envolvidos”.
Se Lula e seu principal conselheiro diplomático se realinharam, o mesmo não pode ser dito em relação à bancada do PT no Senado. Num único dia, houve duas notas antagônicas. O líder do partido na Casa, Paulo Rocha (PA), divulgou uma com críticas à “política americana de agressão à Rússia” e de “contínua expansão da Otan” que, no quarto parágrafo, “lamenta e condena essa aposta temerária na guerra”. A nota acabou sendo retirada do ar.
Jean Paul Prates (RN), líder da minoria no Senado e correligionário de Rocha, restabeleceu a hierarquia das prioridades nos princípios da política externa. Em outra nota, principiou por condenar a “violação ao direito internacional”, ressaltar o “custo humanitário da guerra” e o “respeito inegociável dos direitos humanos” antes de criticar a atuação da Otan no Leste.
A bússola desgovernada do PT acabou caindo no radar dos adversários que passaram a dividir suas críticas entre dois polos da disputa: “Eles [Bolsonaro e Lula] apoiam o lado errado. O lado do agressor e do autoritarismo” (Sergio Moro); “O PT desprezando a dor e o sofrimento de seres humanos para defender um ditador. Incompreensível e inaceitável” (João Doria); “No mundo atual não existe mais guerra distante e de consequências limitadas. Precisamos nos preparar, portanto, para os reflexos do conflito. Muito especialmente por termos um governo frágil, despreparado e perdido” (Ciro Gomes).
Enquanto isso o presidente deixou a bola com o Itamaraty, que apelou à suspensão das hostilidades e a uma solução diplomática referindo-se ao ataque como “deflagração de operações militares”.
Ao não condenar o uso da força, o Brasil se distanciou de vizinhos como o Chile de Gabriel Boric, mas se alinhou aos parceiros do Brics, China e Índia. Os chineses, que firmaram com os russos documento histórico de aproximação, ressalvaram “antecedentes históricos complexos”, e os indianos, de quem a Rússia é tradicional fornecedora bélica, silenciaram.
Ao se negar a comentar a postura de ambos os países na entrevista de ontem, Joe Biden optou por manter os canais sem os quais não terá sucesso em transformar Putin no que chamou de “pária internacional”.
Não teve o mesmo cuidado com o Brasil quando sua porta-voz, Jean Psaki, sentiu-se liberada para dizer que o país estava do outro lado dos “valores globais”. Na véspera, Bolsonaro havia se solidarizado com Putin. Uma semana depois, o presidente que mimetizou um macaco na loja de cristais da política internacional assistiu, de camarote, aos estilhaços que desarranjam a ordem mundial – e doméstica.
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