A Receita Federal mobilizou por quatro meses uma equipe de cinco servidores para apurar uma acusação feita pelo senador Flávio Bolsonaro de que teria tido seus dados fiscais acessados e repassados de forma ilegal ao Coaf (órgão federal de inteligência financeira), o que deu origem ao caso das “rachadinhas”.
Documentos inéditos obtidos pela Folha mostram, pela primeira vez, a ação efetiva da máquina pública federal em decorrência da estratégia de Flávio.
O filho do presidente Jair Bolsonaro e seus advogados buscaram a ajuda de órgãos do governo federal para tentar reunir provas com o intuito de anular as investigações da suspeita de que ele comandou um esquema de desvio de parte do salário de assessores quando era deputado estadual, no Rio de Janeiro.
A Receita jamais confirmou a apuração. A partir de informações internas que indicavam a existência do caso, a Folha apurou o número do processo, 14044.720344/2020-99, e, a partir daí, entrou com um pedido por meio da Lei de Acesso à Informação.
As 181 páginas do processo mostram que, de outubro de 2020 a fevereiro de 2021, a Receita deslocou dois auditores-fiscais e três analistas tributários para fazer a apuração.
Essa investigação foi objeto de requerimento apresentado por Flávio, por intermédio de quatro advogados —Luciana Pires, Renata Alves de Azevedo, Juliana Bierrenbach e Rodrigo Roca—, ao então secretário especial da Receita, José Barroso Tostes Neto.
Na petição, datada de 25 de agosto de 2020, o filho do presidente requisitou apuração “com a máxima urgência” para identificação de “nome, CPF, qualificação e unidade de exercício/lotação” de auditores da Receita que, segundo ele, desde 2015 acessaram seus dados fiscais, de sua mulher, Fernanda, e de empresas a eles relacionadas.
A tese era a de que servidores da Receita no Rio de Janeiro haviam vasculhado de forma ilegal os dados de Flávio e de familiares e, a partir daí, repassado informações ao Coaf, órgão responsável pelo relatório de inteligência enviado ao Ministério Público do Rio e que deu origem à investigação das “rachadinhas” contra o filho do presidente e ex-assessores.
Flávio é taxativo no pedido, detalhando não querer acesso a parte dos acessos feitos, “mas a TODAS [escreve em maiúsculas] as pesquisas de seu nome, de sua esposa e de suas empresas, que tenham sido realizadas desde o ano de 2015”.
Na petição entregue a Tostes Neto, ele afirma ainda que a suposta violação da qual teria sido vítima representa um “imenso risco à estabilidade das mais diversas instituições do país”, entre elas a Presidência da República e a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
“A crise que vem se instalando no país, como consequência dos fatos ora apresentados, tende a crescer, atingindo como alvo não apenas o autor e seus familiares, mas incontáveis cidadãos, em especial, empresários, funcionários públicos e políticos, independente de ideologia e partido político.”
O senador diz também que a averiguação deveria ser realizada não necessariamente pela Receita, mas “diretamente pelo Serpro”, a empresa estatal que detém os dados do Fisco. Esse pedido específico de apuração via Serpro foi formalmente negado.
Como a Folha mostrou em junho do ano passado, porém, apesar da negativa oficial, a Receita solicitou uma devassa ao Serpro para tentar identificar investigações, entre outros, em dados fiscais de Bolsonaro, de seus três filhos políticos, de suas duas ex-mulheres e da primeira-dama, Michelle.
A pesquisa custou R$ 490,5 mil à Receita, pagos ao Serpro. O valor foi obtido pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação. A defesa de Flávio disse não ter tido acesso ao resultado dessa apuração.
A Polícia Federal também instaurou inquérito para apurar supostos acessos irregulares por parte de auditores da Receita. A apuração foi aberta a partir de um relatório do TCU (Tribunal de Contas da União) que apontou casos do tipo identificados pela própria Receita, um deles envolvendo Flávio.
Em suma, três pontos eram apresentados na petição de Flávio entregue ao então secretário da Receita:
1) a acusação de auditores suspeitos de enriquecimento ilícito de que foram vítimas de devassas ilegais por parte dos órgãos de correição do Fisco do Rio, o que indicaria um modo de operação desses órgãos;
2) a existência de dados do relatório de inteligência do Coaf que só poderiam ter sido repassados pela Receita;
3) e a existência de um “manto da invisibilidade”, ou seja, senhas da Receita que não deixariam rastros e tornariam os acessos indetectáveis a apurações internas.
“A Receita Federal do Brasil, por intermédio de sua corregedoria e de sua inteligência, em especial, por intermédio de seus escritórios Escor07 e Espei07, vem, rotineiramente, alimentando informalmente os demais órgãos de controle, com dados sensíveis e sigilosos, para, no momento oportuno, investigar os alvos escolhidos e devassados previamente”, afirma Flávio na petição apresentada pelos advogados.
Tecnicamente, o pedido do senador ficou na gaveta de Tostes Neto por dois meses, até que uma reportagem da revista Época relatou que a defesa de Flávio havia se reunido com o presidente Jair Bolsonaro, o diretor-Geral da Abin, Alexandre Ramagem, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, para tratar do caso.
A apuração foi instaurada pela Receita no mesmo dia, 23 de outubro de 2020, por ordem de Tostes Neto. Coube ao coordenador do Grupo Nacional de Investigação da Receita, Luciano Almeida Carinhanha, deslocar os cinco servidores para realizar análise preliminar do caso, em um prazo de 180 dias.
Ela teve como ponto de partida a reportagem. O requerimento de Flávio foi enviado por Tostes Neto aos servidores no mesmo dia 23 e, na prática, embasou toda a apuração dos meses seguintes.
A comissão de servidores foi presidida por Diogo Esteves Rezende, que segundo documentos do processo integrava o Escritório de Corregedoria da 7ª Região Fiscal, exatamente o órgão que era acusado por Flávio de cometer ilegalidades.
A investigação do Fisco concluiu pela improcedência das três teses do filho do presidente.
Relembrou que a acusação dos auditores-fiscais suspeitos de enriquecimento ilícito não tinha resultado em nenhuma prova de ato ilegal pela corregedoria, apontou que os dados do relatório de inteligência do Coaf não tinha nenhuma informação estranha àquele órgão e disse que “todo e qualquer acesso aos sistemas e bancos de dados fiscais possuem registros de quem efetuou e de quando foi realizado”, não existindo, portanto, o alegado “manto da invisibilidade”.
“A Receita não possui ou utiliza qualquer tipo de ‘senha secreta’ ou ‘senha invisível. Todo e qualquer acesso aos sistemas e bancos de dados fiscais possuem registros de quem efetuou e de quando foi realizado, independentemente de o servidor estar atuando na Corregedoria ou nos Escritórios de Pesquisa e investigação”, afirmou a Cotec (Coordenação-Geral de Tecnologia e Segurança da Informação) do Fisco, durante a investigação.
Por fim, o relatório afirmou que, na análise do histórico de acesso aos dados fiscais de Flávio Bolsonaro, “não foram verificados indícios mínimos de materialidade de possíveis infrações disciplinares que ensejariam a continuidade ou o aprofundamento do feito”.
O documento, datado de 25 de fevereiro de 2021, conclui com a afirmação de que “foi possível verificar que nenhuma das alegações contidas (…) [no] requerimento do Senador Flávio Nantes Bolsonaro encontrou aderência à realidade dos fatos apurados, não se vislumbrando, por ora, indícios de eventual autoria e materialidade de possíveis ilícitos administrativos que justificariam a propositura de instauração de procedimento correcional acusatório.”
DEFESA DEFENDE PEDIDO, MAS DIZ QUE FISCO INDICOU QUE NÃO FARIA APURAÇÃO
Embora tenha sido procurada desde a manhã de segunda-feira (21), a defesa de Flávio Bolsonaro só se manifestou nesta terça (22), após a publicação da reportagem.
Em nota, as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach afirmam ter recebido com surpresa a notícia de que a Receita Federal havia realizado a apuração, já que o Fisco teria indicado que não a faria.
As advogadas afirmam ainda não ver nenhuma imoralidade ou irregularidade no pedido, já que havia suspeitas de graves irregularidades internas. A Receita não se pronunciou.
Veja a íntegra da nota das advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach:
“A defesa do senador Flávio Bolsonaro recebeu, com surpresa, a notícia de que essa investigação foi realizada mesmo depois de a Receita Federal ter informado que não a faria. Até o momento, a instituição não apenas negou o pedido dos advogados como omitiu a realização de tal procedimento, tanto que o MPF abriu inquérito civil para apurar o motivo da inércia da Receita Federal frente aos indícios apresentados pelos advogados.
Cabe ressaltar que não há nada de ilegal ou imoral na solicitação da defesa. E que, estranho seria se a instituição ignorasse suspeitas de falhas e irregularidades internas e permitisse que essas irregularidades prosperassem.
A defesa lembra ainda que o TCU identificou acesso indevido aos dados do senador Flávio Bolsonaro e de seus familiares, confirmando as suspeitas de que a máquina pública foi usada indevidamente para atacar a reputação do parlamentar.”
O senador, seu ex-assessor Fabrício Queiroz e outros servidores foram denunciados pelo Ministério Público do Rio no caso da “rachadinha” em outubro de 2020, mas o caso teve reviravoltas favoráveis ao senador na Justiça e também na Receita Federal.
Ainda em dezembro de 2020, o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita no Rio de Janeiro (Escor07), Christiano, Paes Leme Botelho, alvo de Flávio, foi exonerado.
Em junho de 2020, o Tribunal de Justiça do Rio já havia tirado o caso das “rachadinhas” das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, e enviado para a segunda instância.
Flávio obteria uma vitória mais robusta em novembro do ano passado, quando o STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulou todas as decisões tomadas pela primeira instância da Justiça do Rio de Janeiro. A corte entendeu que Itabaiana não tinha poderes para investigar o filho mais velho do presidente.
Um mês depois, o secretário da Receita para o qual Flávio direcionou o requerimento de investigação foi exonerado. José Barroso Tostes Neto vinha sofrendo pressão de Flávio para nomear uma pessoa de sua preferência na corregedoria do órgão.
Em 1º de fevereiro, o ministro Paulo Guedes (Economia) nomeou como novo corregedor da Receita Federal o auditor-fiscal João José Tafner, simpatizante da família Bolsonaro.
ENTENDA O CASO
6.dez.2018 – Surge o caso da “rachadinha”
O jornal O Estado de S. Paulo revela que um relatório produzido pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) indicou movimentação financeira atípica de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio
25.jun.2020 – TJ tira o caso da primeira instância
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro retirar o processo da “rachadinha” das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Itabaiana, e envia para a segunda instância
25.ago.2020 – Flávio pede investigação especial à Receita
Por meio de seus advogados, Flávio encaminha ao então secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, requerimento para que fosse realizada, “com a máxima urgência”, a apuração. Ele pedia “nome, CPF, qualificação e unidade de lotação” de auditores da Receita que acessaram dados fiscais de Flávio, de sua mulher, Fernanda, e de empresas a eles relacionadas
A tese é de que acessos ilegais por parte de servidores da Receita no Rio de Janeiro alimentaram o relatório do Coaf que originou a investigação das “rachadinhas”
Entre os indicativos apresentados nesse sentido, estão alegações de auditores fiscais investigados por enriquecimento ilícito. Eles afirmam que tiveram dados acessados ilegalmente por dois órgãos da Receita Federal no Rio —o Escritório de Corregedoria da 7ª Região Fiscal (Escor07) e o Escritório de Pesquisa e Investigação da 7ª Região Fiscal (Espei07)
23.out.2020 – A Receita instaura a investigação pedida pelo filho do presidente
Reportagem da revista Época relata que em agosto a defesa de Flávio havia se reunido com o presidente Jair Bolsonaro, o diretor-Geral da Abin, Alexandre Ramagem, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, para tratar do caso. A tese era da existência de uma quadrilha nos quadros da Receita
Tendo como ponto de partida essa reportagem e o requerimento apresentado por Flávio em agosto, o coordenador do Grupo Nacional de Investigação da Receita, Luciano Almeida Carinhanha, desloca cinco servidores para realizar análise preliminar do caso, em um prazo de 180 dias
19.out.2020 – Ministério Público denuncia Flávio
O Ministério Público do Rio denuncia Flávio, Queiroz e outros 15 ex-assessores do filho de Bolsonaro (informação é divulgada pelo TJ em 3.nov, na volta das férias do relator). O hoje senador foi acusado de liderar uma organização criminosa para recolher parte do salário de seus ex-funcionários em benefício próprio. Queiroz era apontado como o responsável pelo recolhimento do dinheiro
4.dez.2020 – alvo da defesa de Flávio é demitido da Receita no Rio
Alvo da defesa de Flávio, o chefe do Escritório da Corregedoria da Receita Federal no Rio de Janeiro (Escor07), Christiano Paes Leme Botelho, é exonerado
25.fev.2021 – Comissão da Receita conclui não ver indício mínimo nas acusações de Flávio
Relatório assinado pelos cinco servidores (dois auditores fiscais e três analistas tributários) diz que “nenhuma das alegações contidas (…) [no] requerimento do senador Flávio Nantes Bolsonaro encontrou aderência à realidade dos fatos apurados, não se vislumbrando, por ora, indícios de eventual autoria e materialidade de possíveis ilícitos administrativos que justificariam a propositura de instauração de procedimento correcional acusatório”
9.nov.2021 – STJ anula provas da rachadinha
O STJ (Superior Tribunal de Justiça) anula todas as decisões tomadas pela primeira instância da Justiça do Rio de Janeiro. A corte entendeu que Itabaiana não tinha poderes para investigar o filho mais velho do presidente
7.dez.2021 – Secretário da Receita é exonerado
O governo exonera o secretário especial da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, que vinha há meses sofrendo pressão de Flávio e que foi o destinatário do requerimento de investigação do caso feito pela defesa de Flávio, em agosto de 2020
Conforme a Folha informou, o filho do presidente pressionava Tostes Neto a nomear uma pessoa de sua preferência na corregedoria do órgão
24.jan.2022 – Folha revela que Receita arquivou pedido de Flávio
A Folha revela que a Receita havia arquivado o pedido de investigação feito pela defesa de Flávio
1.fev.2022 – Simpatizante dos Bolsonaros é nomeado na Receita
O ministro Paulo Guedes (Economia) nomeia como novo corregedor da Receita Federal o auditor-fiscal João José Tafner, simpatizante da família Bolsonaro
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