terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

NAVALHA NA CARNE

Andrea Jubé, Valor Econômico

No comício de despedida da campanha de Fernando Haddad no Rio de Janeiro, a cinco dias da votação no segundo turno, o rapper Mano Brown jogou água no chope da festa petista. Ao discursar no palco do evento, ele criticou o distanciamento do PT do eleitor da periferia e a perda de comunicação da legenda com esse eleitorado.

“Se não está conseguindo falar a língua do povo, vai perder mesmo”, alertou. “Partido dos trabalhadores tem que entender o que o povo quer, se não sabe, volta pra base e vai procurar saber. Se falhou, vai ter que pagar mesmo”. E o PT pagou com a derrota para Jair Bolsonaro após quatro vitórias consecutivas nos pleitos presidenciais.

Três anos depois, Mano Brown comentou o episódio ao entrevistar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o podcast “Mano a Mano”. Em setembro do ano passado, o músico explicou ao líder petista o motivo de seu momento de “explosão” no ato pró-Haddad:

“Eu olhei pra plateia e não vi os meus lá, a massa do morro. Vi a militância leal ao PT, mas não vi os meus. O motorista, o segurança, os garis, não estavam do nosso lado. Ali eu sabia que a gente tinha perdido a eleição. Eu fui pra lá em clima de velório e o clima lá era de festa”, relembrou.

 “Foi um momento de explosão, de decepção. Foi como cortar na própria carne, navalha na carne. Foi como você dar um tapa no seu filho”, enfatizou o músico.

Em sua resposta, Lula, primeiro, agradeceu a sinceridade do rapper. “Eu prefiro que as pessoas digam a verdade nua e crua. Quando a gente ouve a verdade, toma um choque de realidade”.

Em seguida, Lula reconheceu que houve mudanças no PT depois que o partido começou a conquistar espaços de poder. “Obviamente, na medida em que um partido elege muitos deputados, muitos governadores, vai mudando a relação com a sociedade. Quem manda no deputado não é mais o povo da comunidade, é o gabinete dele. Muda a relação de forças”, argumentou.

O ex-presidente afirmou nessa mesma entrevista que o PT se esqueceu do seu discurso originário, que era “dar vez e voz ao povo trabalhador” e ressaltou que “o dia que o PT esquecer pra que nasceu, é melhor acabar”.

Quase quatro anos depois da “explosão” de Mano Brown, foi a vez do líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e pré-candidato ao governo de São Paulo pelo Psol, Guilherme Boulos, no recente artigo “É a periferia, estúpido!”, acionar a sirene para que os partidos de esquerda não se deixem entorpecer pelo clima de festa e percam de vista o eleitor da periferia.

Ele vê com arrepios o mesmo clima de festa precipitado, que foi detectado por Mano Brown no comício de Haddad. “A questão é rebater o clima de já ganhou, que pode ser desmobilizador para uma campanha de risco como será a deste ano”, observou Boulos em conversa com a coluna.

Boulos vê explicação para o favoritismo de Lula na conjuntura de PIB provavelmente negativo no ano eleitoral, inflação crescente e desemprego elevado, ao mesmo tempo em que não acredita no crescimento da terceira via. Em contrapartida, não enxerga Bolsonaro como “cachorro morto”, lembrando que ele tem ferramentas para crescer, sobretudo entre os mais pobres.

O líder do MTST considera um erro subestimar instrumentos de Bolsonaro como o Auxílio Brasil de R$ 400, que começou a ser pago a mais de 18 milhões de famílias e milhares de pequenas obras em andamento em todo o país, além da liberação de emendas parlamentares, inclusive do orçamento secreto, de políticos da base governista.

“Vai ter um nível de investimento nos mais pobres que não houve em nenhum outro momento”, alerta Boulos.

Se em 2018 Mano Brown criticou a perda de interação da esquerda, em especial, do PT, com a periferia, Boulos acredita que essa questão se resolve com a liderança de Lula nesta campanha. “Ele tem uma relação forte, uma relação simbólica com os mais pobres, eles têm a memória do governo dele. Não tenho dúvida de que o Lula vai ganhar e vai ganhar bem no Nordeste e na maior parte das periferias urbanas”.

O erro, ressalta o líder do MTST, é que setores da esquerda começaram a achar que a eleição está decidida e veem Bolsonaro como liquidado, enquanto a máquina pública já começou a cumprir o seu papel.

Nesse ponto do raciocínio, Boulos observa que algumas pesquisas, de um mês pra cá, já começaram a identificar uma redução da distância entre Lula e Bolsonaro na corrida pré-eleitoral. Ele argumenta que, se essas pesquisas forem examinadas com lupa, esse movimento já seria decorrente dos primeiros pagamentos do Auxílio Brasil no valor de R$ 400, que começaram no fim de 2021.

Ele expôs essa preocupação no encontro com Lula em São Paulo no começo do mês e afirma que o presidenciável do PT está consciente desse cenário, bem como outras lideranças do partido, já que nem todos subiram no salto.

Alas do PT que se declaram conscientes do duro embate pela frente com Bolsonaro, citam outras ferramentas de atração dos mais pobres em poder do governo, como a renegociação das dívidas do fundo de financiamento estudantil (Fies), que pode favorecer pelo menos um milhão de estudantes. Para quem estiver inscrito no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), o desconto do débito pode chegar a 92%.

Boulos diz que essa campanha vai demandar mais empenho e mobilização das forças de esquerda, porque não será decidida com “jogadas de marketing tradicionais”.

Ele alerta que é preciso aprender com os erros de 2018, porque Bolsonaro vai “operar em frequência dupla”. Segundo Boulos, Bolsonaro sairá a campo com a mesma “forte operação de redes sociais”, o “ gabinete do ódio”, a “turma do zap” e, ao mesmo tempo, terá palanques fortes nos Estados e tempo de propaganda na TV.

Nesse cenário, Boulos afirma que a esquerda terá que fazer uma campanha suprapartidária, com “olho no olho” do eleitor e gastando a sola dos sapatos

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