Doutora em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de sociologia política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro/Universidade Cândido Mendes
Estamos em campanha. E, por isso, tão angustiados quanto engajados.
Aqueles que se espantaram com os resultados das eleições de 2018 ao menos agora estão mais conscientes do que representa Jair Bolsonaro e o bolsonarismo para o Brasil.
Para os que apostaram até o último segundo que fração importante da sociedade brasileira não se alinharia ao totalitarismo e ao fascismo, hoje, a cada pesquisa eleitoral divulgada, surge o temor de olhar a dança dos números de intenções de votos e cogitar que talvez não seja em 2022 que poderemos dar adeus a Bolsonaro.
Entretanto, mesmo que possamos, é bom que tenhamos claro: o adeus será à figura de Bolsonaro enquanto presidente, mas não à de Bolsonaro como líder popular autoritário, desleal e violento. Menos ainda (o que é mais preocupante) ao bolsonarismo como presença de longo prazo na sociedade brasileira.
Após a redemocratização, a despeito das muitas conquistas sociais e da garantia de importantes direitos sociais, é importante lembrarmos que o cotidiano de nossas periferias continuou marcado por violência e insegurança social.
Os trabalhadores mais pobres, apesar da possibilidade de ascensão e inclusão social, que se deu essencialmente pelo consumo, foram obrigados a se adequar à voracidade e à exploração do trabalho informal, precarizado, uberizado.
Os pobres, obrigados a se virar para sobreviver, encontraram apoio em algumas políticas públicas, mas sobretudo em redes dentro de suas comunidades, dentro das igrejas e nas milícias.
A frustração com as tentativas de integração social não concretizadas gerou uma reação ressentida, em um tecido social esgarçado. A reação se estruturou nas periferias, se fortaleceu nas igrejas –principalmente as neopentecostais, nos rincões da internet.
A reação também partiu de frações das classes médias, que se sentiram ameaçadas com o movimento de ascensão social das classes baixas (observado de 2003 a 2014), e das elites financeiras e conservadoras, desgostosas com os rumos políticos e econômicos do país, até eclodir nas ruas e nas páginas dos jornais em 2013.
Uma guerra cujos contornos foram ficando mais claros apenas a partir de 2016 e, principalmente, após 2018.
Violência, abandono, indignação, injustiça e ressentimento. Esses são os afetos que orientam a ação política pelo ódio ao outro (diferente) e por um senso de justiça primário, que requer que o injustiçado faça justiça com as próprias mãos.
Ressentimento social gerado pelo sentimento de injustiça causado por uma promessa não cumprida é uma manifestação coletiva desafiadora, de difícil solução, pois o ressentido localiza no outro a culpa pela sua situação, por aquilo que perdeu ou não conquistou.
Nesse caso, aqueles que se sentem prejudicados não se percebem autores do pacto social, nem capazes de alterá-lo. Sem potência política, tendem também inconscientemente a buscar por governantes que possam protegê-los, uma autoridade tal como as figuras parentais da infância.
Buscam por um messias redentor.
A CONTINUIDADE DO BOLSONARISMO PARA ALÉM DE BOLSONARO
Esses sentimentos estão mais vivos do que nunca na sociedade brasileira e tendem a aflorar novamente, fortes, fazendo com que a política –justo ela, por quem o brasileiro nunca nutriu muito apreço– volte ainda mais ressentida aos perfis do Facebook, aos grupos de família do WhatsApp, mas também às mesas do almoço de domingo, às filas do supermercado, da padaria, do ônibus, do metrô, do trem.
Por meio de opiniões formadas nas redes sociais, em grupos de WhatsApp, pelos influencers do YouTube, ou por figuras de autoridade totalmente descompromissadas com os fatos, com os dados divulgados pelos institutos de pesquisa, com a ciência, com qualquer fundamento de verdade.
Certamente um dos grandes problemas que precisaremos enfrentar é o descrédito socialmente generalizado nos meios formais de comunicação, nas instituições, na ciência, nas escolas e professores (acusados de doutrinadores).
Ao longo dos últimos anos, na onda do ódio à política, vimos crescer uma massa de pessoas revoltadas com veículos de comunicação –muitos deles inclusive alinhados a valores de direita–, alguns associados a hashtags pejorativas, como o termo "lixo", e aos "esquerdistas doutrinadores comunistas". "Lixo!", gritaram.
Em meio a uma guerra cultural e política, veículos de comunicação foram queimados na fogueira do negacionismo, e formadores de opinião, intelectuais públicos e "influencers" (também eles) passaram a queimar nas fogueiras do cancelamento.
Universidades, escolas e professores viram-se publicamente achincalhados, acusados de doutrinação ideológica, "tomadores de partido".
Ter e enunciar publicamente uma opinião política passou a ser ato abominável, motivo de profunda cisão entre o "nós, cidadãos de bem", e o "eles, esquerdistas, marxistas culturais, bandidos".
Meu ponto é: esse cenário não foi desmontado, e as opiniões e ações que ele cria e alimenta não estabelecem qualquer relação com a ciência, com os dados, com os fatos da economia ou com a política dos gabinetes e partidos.
São informados por micropercepções de mundo e por concepções teológicas do que é o bem, que se apresentam como verdades incontestes. Assim não há discurso, não há argumento capaz de fazer frente ao que se sente e à reação indignada que se constrói, justificada a partir de valores e palavras de ordem redentoras.
Nessa lógica, é preciso resistir aos problemas e ser perseverante, pois para resgatar os valores da pátria e salvar o Brasil ainda é preciso muita luta.
Enquanto isso, a realidade desafia.
Os dados e as manchetes de jornais insistem: a inflação disparou, o desemprego também, a fome voltou. O carrinho de compras está vazio, e as dimensões dos produtos das prateleiras (apesar do aumento de preços) encolheram. A gasolina e o gás de cozinha estão com preços impraticáveis.
Doenças voltaram: o sarampo, a poliomielite, a explosão da dengue em 2022. A mobilidade social regrediu, nos últimos cinco anos vivemos o descenso sócio-ocupacional, voltamos a patamares das décadas perdidas, dos anos 1980 e 1990.
Nunca é demais lembrar das decisões de gestão da pandemia tomadas pelo governo Bolsonaro e das denúncias constantes no relatório da CPI da Covid.
Não esqueçamos do luto coletivo e dos mortos e órfãos da pandemia, ou dos atrasos de escolarização e privação de socialização de nossas crianças, dos traumas que serão enfrentados por toda uma geração marcada pela gestão de um governo que se voltou de costas para o coletivo, para o social e para o sofrimento.
A aposta é que as dores da realidade impeçam a reeleição de Bolsonaro, mas o bolsonarismo e todo o ressentimento social do qual ele se nutre seguirão vivos, pulsantes. Temos o dever histórico de encará-los.
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