Tenho insistido na tese da regressão social. Ela atinge a todos, indiscriminadamente. Alguns abençoados julgam-se imunizados, transcendendo ao social com uma pretenciosa autoconsciência absoluta. Situação agravada quando a modéstia incrusta-se nas cavernas do particular, resguardando-se da exposição pública. Uma migração, ou melhor, uma metamorfose no âmbito da coragem em tempo de medos.
Num ambiente doentio de polarizações, comum a repetição de comportamentos simplificadores entre grupelhos todos cheios de razão histórica. Inseguros, apavorados, pessoas buscam se agarrar em algo para sentirem-se melhor, com a sensação de sentido existencial em meio da desordem crescente. Nesse aspecto é que o absurdo e seu teatro posam como “obviedade do óbvio”, aproveitando, em parte a Darcy Ribeiro.
Mesmo entre amigos reproduzem-se cobranças, juízos morais, condenações sobre posturas. Jamais as milícias do politicamente certo e errado foram tão presentes, e dissimuladas. No contexto político de banalização da vida pública sobra para a vida privada. A biruta acelera seus movimentos catatônicos.
Pessoas próximas, familiares, se estranham e se distanciam. Os mais extremados, justificados na ideia fixa de estar no caminho certo, descartam relacionamentos e vão se segregando em verdadeiras tribos sectárias.
Os que não pensam igual são tomados como de ultradireita ou ultraesquerda. Dentro do mesmo grupelho as vozes dissonantes são carimbadas, “canceladas” no limite, como se agentes inimigos infiltrados fossem. Não raramente amigos e irmãos acusam-se de “bolsonaristas”, “fascistas” ou “lulistas”, comunistas. “Acordem”, gritam uns aos outros… “Exterminem os vermes” e outro grito entre torcidas iradas.
Nas confrarias, verdadeiro bullyng fraterno emerge no dito e no não dito. O prestígio e a reputação, o trabalho acumulado em toda uma vida, os milhares de dias em experiências comuns, são questionados simplesmente por “inadequação” ao que quase religiosamente toma-se por óbvio de cada parte. A loucura é de todos, ok! Filósofos e PhDs midiáticos substituem o debate por xingamentos.
Fernando Schüler (A volta da Crimideia, Veja, 29.6.22)) situa essa migração do espaço público para o mundo digital e a compulsão de retirar das redes “perigos para a democracia”, banindo seus agressores. As mutações embaralham as esferas embaçadas do agir público e privado.
Em nome da Constituição e de um liberalismo oportunista, até o STF, cuja imagem é cada vez mais debochada e desacreditada por amplos setores sociais, veste a carapuça e passa a ser a definição final de verdade sobre liberdade de expressão diante de crimes tão abstratos como vagos. O caso Daniel Silveira é, no mínimo, instigante. O julgador é o principal ofendido. Exagero? Erro? De todo modo a Crimideia de George Orwell entra na discussão.
Na pauta de Lula um novo marco regulatório para a internet é certo. De novo, com que critérios de verdade sobre o que é e não é liberdade de expressão, indivíduos e organizações devem trilhar. Muitas as facetas de nosso desenvolvimento ornitorríntico.
Bem lembrado por um jurista amigo, advogado do direito público, Marcelo Peregrino, numa troca de ideias: ” A criminalização da política também teve no PT sua grande estrela. A lei da ficha limpa surgiu no governo do PT. O que mais autocrático que um juiz decidir o universo dos candidatos?” Volto ao estorvo das ideias e posturas que dividem ou melhor, obstam dialogias.
O outro incomoda, constrange, desafia, agride…Constrangidos insistem no tom acusatório contra as posições “irracionais” da parte de outros, ou “inimigos”, pautadas na régua das dicotomizações e, se fora delas, ainda mais. Covardes os que não escolhem entre o Deus e o Diabo.
O esvaziamento geral de canais públicos de interlocução vai minando as esferas particulares, ampliando os ambientes da vida cotidiana avessos à divergência e à tolerância. Mesmo entre aqueles irmanados em causas comuns.
A disputa entre Bolsonaro e Lula vem emburrecendo o país. Ela induz à confusões tremendas, maniqueizando indivíduos nas suas vidas públicas e privadas. Afinal, se os candidatos são contrapostos como o bom diante do mal, não há espaço para dúvidas.
Até a terceira via na disputa presidencial passa a ser um atestado de ingenuidade, ignorância ou debilidade mental. Afinal, o que há de mais importante do que derrotar comunistas, para fascistas, e fascistas, para comunistas. Como se entre essas expressões extremadas e redutoras da política não houvesse mais vida útil ou, pior, uma complexa sociedade de indivíduos e grupos vivos e vívidos.
Milhões de seres humanos são considerados, pelos dois times na frente do campeonato, como equivocados diante do perigo, mesmo idiotas. Parecem empurrados para fora do campo do político da parte dos protagonistas daquela polarização radicalizada . O utilitarismo no quadro maniqueísta é seletivamente, ainda mais aterrorizante.
Indivíduos não satisfeitos em serem coadjuvantes nesse tabuleiro do absurdo resistem, questionando procedimentos e sentenças em face de atos “irracionais” de escolhas por um dos lados e, pior, por conta da descrença neste ou naquele entre os favoritos, ungidos na salvação nacional unilateral. Ela é “legítima, exclusiva e definitiva”, justificando o comportamento público turbinado por condenações subjetivas, parciais e autoritárias. Sejam elas de base evangélica, ateia, protofascista ou neostalinista.
Mensagens e vídeos de conteúdo político eventualmente falsos – que todos em algum momento trocam entre amigos e conhecidos, nos ambientes de jogos passionais e de bebericos, ok, até material adulto (apreciados somente por machistas e porcos chauvinistas) merecem alertas sobre o seu impacto penal.
No limite a seriedade ou não de uma informação, fidedigna ou ambígua, falseada ou interpretada, analítica ou retórica, provocativa ou irascível, situa-se no pano cultural esgarçado da miséria das ideias e de suas desordens que produzem e são resultantes das “ordens” social e intelectual. É dizer, a seriedade costuma dispensar os filtros do que pode permitir uma aferição mais robusta do que os “desclassificados” ofereceram em dezenas de livros, escritos, não lidos ou pouco compreendidos, e nos próprios testemunhos de vida. O senso comum porta também parcelas de verdade, ou não?
As adjetivações ou impressões quanto à não coerência (?) de dado autor, por mais que possam causar essas impressões, são suspeitas por desmemória ou por paralisias cognitivas a todos comuns.
Nossas esferas públicas e privadas jamais se constituíram a contento para afirmar culturas e práticas democráticas. Diante de um turbilhão de mudanças nos encontramos inseguros. O mundo em guerra. O Brasil com problemas institucionais imensos. Tudo nos remetendo à simplificações da complexidade das crises e à caça a bodes expiatórios. Uma confusão generalizada. Importante não despotencializar ou mercantilizar os afetos que importam, nesse clima de vale tudo. Bata na porta do vizinho e o abrace.
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