quinta-feira, 22 de setembro de 2022

ESTADISTA DE FANCARIA

Editorial O Estado de S.Paulo

Em seu recém-encerrado tour pelo exterior, o presidente da República, Jair Bolsonaro, tinha dois compromissos como chefe de Estado: participar do funeral da rainha Elizabeth em Londres e da abertura da Assembleia-Geral da ONU em Nova York. Esteve nas duas solenidades, mas em nenhuma delas participou efetivamente como chefe de Estado. Usando dinheiro público e a estrutura da Presidência, Jair Bolsonaro não se comportou como representante do Brasil, mas como um líder de facção política, fazendo comícios eleitorais onde se exigia uma conduta de estadista.

Diante de um histórico que inclui a imitação jocosa de um doente de covid com falta de ar, sabotagem do esforço para vacinar os brasileiros, propaganda de remédios ineficazes contra a covid, ofensas a jornalistas (principalmente mulheres), manobra para indicar um filho à Embaixada nos EUA, suspeitas de rachadinha e de lavagem de dinheiro na família, incentivo ao descumprimento da lei ambiental, desgoverno nas áreas da saúde e da educação e ameaça golpista de não reconhecer o resultado da eleição, talvez alguém possa pensar que se trata de um pecadilho a confusão feita por Jair Bolsonaro entre candidato à reeleição e chefe de Estado. Não é.

Em primeiro lugar, o uso do cargo público para fins eleitoreiros significa descumprimento da lei eleitoral em dois pontos centrais. Há a utilização do dinheiro público para fins particulares, o que é manifestamente ilegal. E há abuso do poder político – o detentor do cargo usa sua posição pública para angariar votos –, instaurando-se um desequilíbrio de forças entre os candidatos, que devem dispor de igualdade de condições.

Um presidente que a todo momento se jacta de respeitar a Constituição deveria saber que sua atitude é francamente ilegal. Obviamente essa confusão de funções não foi mero descuido. Foi a repetição da mesma conduta delituosa observada no 7 de Setembro, quando Jair Bolsonaro usou a comemoração do Bicentenário da Independência para fazer campanha eleitoral. Não se tem notícia de que algum outro candidato a presidente tenha explorado os eventos oficiais do Bicentenário para fazer comício ou transformado repartições diplomáticas do Brasil no exterior em palanque. A democracia exige igualdade de condições. A Justiça Eleitoral não pode ser conivente com abuso do poder político ou econômico.

Ademais, há um aspecto que transcende a lei: a dimensão do exercício da Presidência da República. Como chefe de Estado, o presidente da República não representa apenas os seus apoiadores ou mesmo uma parcela, por maior que possa ser, da população. Ele representa todo o País, toda a população. Por isso, quando um chefe de Estado fala, especialmente no exterior, ele está falando em nome de toda a população.

No entanto, e aqui está a absoluta incapacidade de Jair Bolsonaro para o cargo, ele nunca fala em nome de todos os brasileiros. Ele não sabe unir. Não sabe agregar. Talvez essa seja a grande constante de seus quatro anos de governo, em que, desde o discurso de posse, em 1.º de janeiro de 2019, sempre apenas se dirigiu a seus apoiadores e a suas pautas. Em todas as circunstâncias, ele procurou explicitamente dividir, provocar, instigar, atritar. Até mesmo no velório da rainha Elizabeth.

Jair Bolsonaro nunca entendeu o que significa ser chefe de Estado. Nunca captou o que implica essa função de representação de todos. Ele sempre se portou como chefe da grei que o idolatra. Daí que a sua viagem à Inglaterra e aos Estados Unidos tenha trazido tanta frustração aos que assumiram a inglória tarefa de melhorar a imagem do presidente para as próximas eleições. A pretensão era produzir imagens de Jair Bolsonaro sério e estadista, ao lado de tantos outros chefes de Estado, mas a criação ficcional tem seus limites.

A incapacidade de Jair Bolsonaro de representar o País não é meramente circunstancial. Tem causas profundas. Seu discurso na ONU, tal como seus três anteriores, foi constrangedor. Bolsonaro reafirmou sua imensa dificuldade de respeitar os limites – seja o de sua função como chefe de Estado, seja o do decoro do cargo que ocupa, seja o da lei. 

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