"Não faça de seu carro uma arma, a vítima pode ser você." O bordão era martelado nos anos 1970, quando até a ditadura militar entendia arma como algo perigoso, que cedo ou tarde se volta contra quem a possui. Décadas de engenharia e legislação tornaram os automóveis bem mais seguros. O resto continua tão temerário como antes.
Violência política, mostram os tempos atuais, se faz com pistolas e facas, mas não só. O dispositivo que habita bolsas e bolsos do país em maior número que o de habitantes espraia desinformação, discursos de ódio e apitos de cachorro, os recados que só fazem sentido para convertidos. Celulares, quando mal usados, causam enorme estrago, quase sempre de ordem sistêmica.
Na última semana, demonstrou a tese o lamentável episódio na plateia do debate entre candidatos ao governo de São Paulo. Um deputado estadual e uma jornalista se enfrentaram, celulares em punho, separados por um segurança. A cena é bizarra, não apenas pela ofensa gratuita do bolsonarista e pela justa indignação da repórter, mas também pelo esquisito balé de braços esticados em busca do enquadramento de si mesmo e do oponente, necessários para o registro do ataque de um lado e da denúncia do ataque de outro. Quando um segundo jornalista arranca o celular da mão do deputado e arremessa o aparelho para longe, a briga acaba como que por encanto. O político grita algo como "o que você fez?" e vai embora. Sem celular, a coisa perde a graça.
Tarcísio Freitas, responsável pela presença do arruaceiro no local, armou imediata operação de redução de danos. Horas depois da confusão, no meio da manhã de quarta-feira (14), a notícia de seu pedido de desculpas a Vera Magalhães na Folha já era mais lida que a da agressão. Eduardo Bolsonaro se solidarizou com a jornalista. A Alesp, de histórico duvidoso em relação a abusadores, abriu debate para punição de Douglas Garcia. Leão Serva, o confiscador de celular misógino, virou campeão nas redes sociais.
Em entrevista à Folha, o diretor da TV Cultura disse que "defender uma mulher de agressão é uma imposição moral", mas que envolver-se fisicamente em confronto é um erro. Em sua coluna em O Globo, Vera escreveu que "algo está muito errado com a democracia quando jornalista vira assunto".
De fato, a democracia vai apanhando neste país e partir para a ignorância é tentador. É justamente o que buscam os agressores. Jornalistas combatem à sombra, mas alguém precisa sobrar para contar a história.
DATAGOLPE
Dos tantos apitos de cachorro ativados pelo bolsonarismo no momento, um dos mais eloquentes se refere às pesquisas de opinião. Acossado pelos números ruins para sua campanha, Jair Bolsonaro e aliados desdenham dos institutos sérios e aludem às multidões do 7 de Setembro e a bandeiras enfincadas aqui e ali para mostrar que são muitos. Pesquisas com resultados duvidosos também ajudam no esforço de, lá na frente, se necessário, ter argumentos para alegar problemas na apuração, caminho golpista por natureza. Há outros riscos, porém.
Até a semana passada, as diferenças mais pronunciadas se davam entre os levantamentos das empresas tradicionais e os das mais novas, bancadas por agentes financeiros. A última rodada, no entanto, evidenciou discrepância nas intenções de voto para o governo fluminense colhidos por Datafolha e Ipec, os dois nomes mais conceituados do mercado.
Talvez por isso, O Globo, na sexta-feira (16), publicou detalhada reportagem sobre os diferentes critérios utilizados pelos institutos de pesquisa. Alguns coletam dados nas residências dos eleitores, uns em locais de fluxo, outros por telefone. Há diferentes amostras também. A calibragem da faixa até dois salários mínimos teria variação de mais de 10 pontos percentuais de uma empresa para outra, algo que virou debate nas redes sociais e, é claro, combustível para fake news.
O diário carioca também defendeu, em editorial, que as empresas de pesquisa passem a adotar cálculos de abstenção, algo que é comum em lugares como os EUA, onde o voto não é obrigatório. Como está cada vez mais fácil não votar no Brasil, ausências podem pesar ainda mais neste ano.
Apesar de ter feito reportagem sobre assédio a pesquisadores do Datafolha em alguns pontos do país, a Folha não parece muito preocupada com a discussão em torno dos institutos. Na noite de sexta-feira (16), publicou texto rápido para dizer que as metodologias das empresas são diferentes e que as redes sociais discutem "teorias da conspiração".
É verdade, mas a pior delas virá como tsunami se Bolsonaro tiver nas urnas um desempenho superior ao apontado nas pesquisas. Economizar em transparência e didatismo, neste momento, não parece estratégia adequada.
José Henrique Mariante
Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman
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