A pretexto de atender ao funeral de Estado da rainha Elizabeth II, o presidente Jair Bolsonaro viajou a Londres para fazer comício e produzir imagens para sua campanha pela reeleição. Trata-se de evidente abuso de poder político e econômico, o que impõe a aplicação de uma punição exemplar pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Não satisfeito, Bolsonaro ainda ampliou sua extensa folha corrida de crimes de responsabilidade ao difundir – mais uma vez sem provas – suspeitas sobre a segurança do sistema eleitoral do País, dizendo que, se ele não ganhar a eleição no primeiro turno, é porque “algo de anormal aconteceu no TSE”.
Durante essa rápida e infame passagem pela capital do Reino Unido, Bolsonaro envergonhou a grande maioria dos brasileiros, que decerto ainda guarda na alma um senso de decência. Além de usar recursos públicos para fazer campanha eleitoral, o que é expressamente proibido pela lei, Bolsonaro se fez acompanhar de indivíduos que nada têm a ver com a missão de Estado que lhe cabia desempenhar, mas têm tudo a ver com sua campanha eleitoral. Interessado em transformar a eleição numa “guerra santa”, Bolsonaro levou um líder evangélico e um padre. Já em Londres, Michelle Bolsonaro levou a tiracolo um influenciador digital que aproveitou para fazer propaganda, nas redes sociais, dos produtos usados pela primeira-dama – afinal, diante de um presidente capaz de fazer comício num funeral, que mal há em fazer marketing com o luto?
O contraste com outro funeral importante, o do líder sul-africano Nelson Mandela, é gritante. Em 2013, a então presidente, Dilma Rousseff, para enfatizar que se tratava de uma missão de Estado, levou em sua comitiva os ex-presidentes Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, José Sarney e Fernando Collor.
Enfrentando uma rejeição proibitiva para um incumbente que tenta a reeleição, Bolsonaro achou que era o caso de usar o funeral da rainha para tentar transmitir a imagem de um governante estimado pela chamada comunidade internacional. Na verdade, ao se comportar como um aproveitador, Bolsonaro só logrou aprofundar o sentimento de comiseração que o mundo civilizado passou a nutrir pelo Brasil desde que ele tomou posse.
Da sacada da residência oficial do embaixador do Brasil, no bairro londrino de Mayfair, Bolsonaro se dirigiu a um pequeno grupo de apoiadores prometendo se opor ao que chama de avanço da “ideologia de gênero”, da “ideologia do aborto” e da “ameaça comunista”. De quebra, ignorando completamente o motivo oficial da visita, foi a um posto de combustíveis em Londres para mostrar que a gasolina ali é mais cara do que no Brasil, o que seria um feito de seu governo. Mas a tosca propaganda eleitoral – que, enfatize-se, usou recursos públicos – obviamente não levou em conta o poder de compra de cada país: no Brasil, abastecer com cerca de 50 litros custa 22% de um salário mínimo; no Reino Unido, custa menos de 6% do piso salarial britânico.
Questionado por jornalistas sobre o óbvio uso da viagem para fins eleitorais, Bolsonaro se irritou, mandou os repórteres fazerem “uma pergunta decente”, virou as costas e encerrou a entrevista.
Em países democráticos, uma das regras mais elementares das disputas eleitorais é a igualdade de condições entre os candidatos. No Brasil, tanto a Constituição como a Lei Eleitoral dispõem de normas muito bem definidas para garantir que candidatos que detêm mandatos eletivos não abusem do poder político e econômico de seus cargos a fim de obter vantagens indevidas em relação aos adversários. Bolsonaro tem obliterado impunemente cada um desses anteparos republicanos. Até quando?
No Twitter, o presidente se apropriou de uma fala do arcebispo da Cantuária durante a cerimônia em memória da rainha Elizabeth II para continuar fazendo campanha e transmitir a ideia segundo a qual é um “servo” do povo brasileiro. “Aqueles que servem serão amados e recordados. Aqueles que se apegam ao poder e aos privilégios serão esquecidos.”
Esquecido Bolsonaro seguramente não será. Haverá de ser lembrado como um dos presidentes mais indignos que já governaram o Brasil.
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