Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.
Manifestei inúmeras vezes nesta coluna minha oposição às políticas públicas e à postura de João Doria (PSDB), como prefeito ou governador.
É inegável, no entanto, seu papel na cruzada pela obtenção da vacina e na liderança de uma frente de governadores que, em contraposição ao negacionismo de Jair Bolsonaro (PL), nos poupou de uma tragédia ainda maior na pandemia, lembrando que o Brasil, com 3% da população mundial, teve 11% dos óbitos. E também, em momentos decisivos, na defesa das instituições.
Embora o ex-governador tenha, com oportunismo, adotado o "bolsodoria" no 2ª turno de 2018, o fato de não integrar o grupo do presidente e de não ter com ele compromisso possibilitou ao estado ter políticas públicas próprias, com uma racionalidade distante do fanatismo bolsonarista. Com isso, exerceu um papel relevante na maior crise sanitária do século.
Essa trincheira que São Paulo representou ao negacionismo de Bolsonaro e ao seu ímpeto autoritário poderá não existir mais. Estamos sob risco de ver o estado cair definitivamente da teia obscurantista do bolsonarismo. De uma força política inexpressiva no estado há quatro anos, ele passou, com Tarcísio de Freitas (Republicanos), a ser favorito nas eleições do maior estado brasileiro.
Para tanto, o bolsonarismo, ou a extrema direita, aniquilou, como fez em quase todo o país, o chamado centro democrático. A rendição do governador Rodrigo Garcia (PSDB), sem nem sequer apresentar condições programáticas, é a expressão mais simbólica dessa capitulação.
Se a eleição nacional representa uma espécie de plebiscito sobre a democracia do Brasil, como ressaltou Celso Rocha de Barros em sua coluna, pois a reeleição de Bolsonaro representará a captura definitiva das instituições para seu projeto autoritário, a relevância do pleito de São Paulo não pode ser minimizada.
Muitos eleitores de centro direita, de centro e até de esquerda (!), que defendem a democracia e têm aversão ao bolsonarismo, como o ex-governador José Serra (PSDB), estão naturalizando o voto ou a vitória de Tarcísio de Freitas, como se a entrega do estado de São Paulo a um colaborador e adepto de Bolsonaro fosse algo aceitável. Não é!
Qualquer que seja o resultado da eleição nacional, Tarcísio no governo de São Paulo será um ativo muito importante, seja para facilitar, sem contraponto, a imposição de um projeto autoritário, seja para servir como um poderoso quartel-general para a sobrevivência do bolsonarismo e para a desestabilização da democracia e de um governo Lula (PT).
Uma gama variada de argumentos é utilizada para amenizar e adocicar o voto em Tarcísio. Um dos mais comuns é dizer que ele é "um técnico e não um político", como se um ministro que serviu por quatro anos um governo que cometeu tantas barbaridades e crimes, sem apontar um senão, possa ser isento.
Regimes autoritários estão repletos de técnicos "apolíticos" que cometem ou são cúmplices de crimes.
Foi o caso do talentoso arquiteto Alberto Speer, que afirmava ser apolítico e serviu ao nazismo. Designado por Hitler para projetar a construção de diversos edifícios públicos e para elaborar os planos urbanísticos de Berlim e Nuremberg, tornou-se próximo ao Führer e foi nomeado ministro do Armamento. Acabou condenado no Tribunal de Nuremberg por crimes de guerra.
As pretensões eleitorais de Tarcísio (fala-se em uma possível candidatura a presidente em 2026, se virar governador) e seus compromissos políticos com o presidente o farão refém do fanatismo bolsonarista, pois os que traem esse ideário acabam no ostracismo. Tarcísio estará a serviço da máquina que o elegeu, pois será ela que lhe garantirá a governabilidade e o futuro político.
Outro argumento que busca amenizar sua eleição é apontar um suposto equilíbrio entre o governo federal e o de São Paulo. Nesse raciocínio, seria demais eleger candidatos do PT para os dois cargos. Daí propõem a dobradinha Lula e Tarcísio.
A tese ignora que tanto a candidatura de Lula como a de Haddad são frutos de uma ampla frente democrática, que envolvem um arco de alianças que vai desde a centro direita à esquerda. Suas candidaturas e seus possíveis futuros governos exclui apenas a extrema direita, ou seja, os bolsonaristas e o centrão fisiológico, devendo incluir um amplo leque partidário.
Apenas no âmbito de uma configuração com esse perfil político será possível iniciar um (difícil) processo de "desbolsonarização" do Brasil e reconstrução de um novo quadro partidário onde o centro democrático possa recuperar o protagonismo que perdeu para a extrema-direita. Isso é muito importante para o futuro da democracia brasileira.
São Paulo, que foi o berço do PSDB e onde ainda existe um lúcido pensamento liberal, é vital nesse processo de reconstrução, ainda mais porque o bolsonarismo deverá governar a imensa maioria (se não for todos) dos estados do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste.
Em termos de políticas públicas, Tarcísio manterá as concessões e privatizações que foram a marca do governo Doria-Rodrigo e que foi sua praia no Ministério da Infraestrutura. Influenciado pela base radicalizada do bolsonarismo e pelo fisiologismo do centrão, irá trazer para São Paulo o retrocesso que caracterizou o governo federal e as práticas implantadas no Congresso, como o orçamento secreto.
Veremos o negacionismo na pauta ambiental, a redução de verba na educação e na ciência e tecnologia, desmonte das políticas culturais, introdução de valores conservadores na pauta de costumes, o controle ideológico no serviço público e a tolerância ao desmatamento e ao garimpo ilegal, entre outros retrocessos.
Assistiremos o aumento da letalidade nas ações da polícia, para o que a já anunciada retirada das câmaras no uniforme dos policiais irá contribuir. As milícias, fenômeno carioca, como o candidato, terão o campo aberto para crescer em São Paulo, o que poderá gerar fortes conflitos com outras facções do crime organizado.
Naturalizar a eleição de Tarcísio de Freitas, como se ele fosse um bom moço e não o representante de Bolsonaro em São Paulo, é um erro que custará caro para o estado.
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