“Nenhum retorno ao passado é possível”. À frase atribuída a Hegel, Marx agregou, ironicamente (tendo por referência o retorno de Napoleão): na história a repetição da tragédia se dá como farsa (18 Brumário, 1852). Talvez farsa e tragédia possam, de tempos cinzas, sintetizar o que aparenta repetir-se ao final da estrofe histórica numa rima (Mark Twain) estranha, nova e sofisticada farsa a serviço de tragédias ainda muito mais aterrorizantes que as conhecidas nos séculos XIX e XX.
Se voltarmos cem anos no tempo podemos observar situações sociais e comportamentos muito similares. Na Itália ou na Alemanha dos anos vinte e trinta do século passado, a maioria dos setores de classes médias, mas também das classes trabalhadoras, era simpática aos discursos fascistas e nazistas.
J.Habermas, ainda menino, e N.Bobbio, adolescente, confessaram o fascínio pelas juventudes hitleristas e mussolinistas, entusiasmados com as críticas contra as (des) ordens, ou crises que pipocavam naqueles países. O clima era de medo, insegurança, desesperança. Desemprego, greves, além do maior perigo: o comunismo instalado em 1917 e a sua declarada vontade de Império. A esquerda comunista era forte nos dois países. Na Alemanha e na Itália milhões de indivíduos sofriam com a autoestima baixa. A retórica patriótica, revanchista, o anticomunismo primário, a propaganda contra os inimigos da Pátria, o estímulo à formação de milícias, a revolta contra as instituições liberais – inócuas ou corruptas, tudo criava o pano de fundo do caos apropriado à intervenção heróica, sob o poder carismático do Duce e do Führer, para realizar o projeto definitivo de saneamento, salvação e retomada da honra nacional. Deu no que deu. Guerra Mundial. Muro da vergonha (1962). Guerra Fria. Cuba (1959) e repressão violenta nas colônias que ousavam lutar por modernidade jurídica e política.
Graças ao nazismo e o fascismo o mundo dos socialismos reais tornou-se um Império e no ocidente naturalizou-se o capitalismo como sinônimo de democracia. Em 1989 essas certezas começam a implodir.
Um final (?) conhecido para os psicopatas que representavam legitimamente a patologia de duas nações mentalmente adoecidas: Hitler se suicidou para evitar Nuremberg. Mussolini foi pego, fuzilado e dependurado em praça pública. Enquanto Stálin, Mao, Ho Shi Min, Ever Hoxa, Tito, viveram muito e morreram de morte natural…
Sem o exército vermelho, sem os partisans, o nazifascismo teria vencido. E já se sabia dos crimes de Stálin e dos Gulágs desde 1926. Mas a opção foi optar pela ajuda vermelha. Contra o terror e o holocausto. O problema é que os indivíduos que protagonizam tragédias e farsas históricas deixaram vivas nas memórias o vírus totalitário, com muitas mutações. Nas pandemias o bicho vem diferente e mais fortalecido.
No dia 30 de outubro temos uma encruzilhada histórica. A sociedade brasileira encontra-se dividida, polarizada. Nunca tivemos dois candidatos cujas elites oegânicas e militâncias se odeiem tanto ao ponto de se matarem. Mas não se trata mais de um retorno aos ambientes do século passado que desembocaram na II Grande Guerra mundial.
Já não é possível uma repetição exatamente igual às vivenciadas nos horrores perpetrados por ideologias totalitárias. Tudo pode se repetir em formas diferenciadas, para a liberdade ou para o terror, piorado. Já não se trata, nos dias de hoje, de incertezas e pânico, de um conflito envolvendo diretivas claramente em conformidade com ideários fascistas da parte dos revoltados (massas e lideranças amalgamadas) com a dificuldade da democracia constitucional em oferecer paz social. Tampouco a utopia comunista, de alguma forma tentando sair do túmulo de Lenin com a desisntitucionalização da democracia liberal, guarda relação com as carências sociais e possibilidades reais de reconceituação emancipatória num tempo multicultural. Mesmo derrotando o Napoleão tupiniquim não está livre ou imunizado das leis de bronze que regem a acumulação, mormente em sua compulsão predatória cuja fúria desregulamentadora aproveita ultranacionalistasce esquerdas de governabilidade.
A repetição é sempre uma possibilidade de imitação atualizada à luz de outras realidades que a deforma para lograr outros conteúdos identificados na expressão de novas formas. Golpes de Estado sanguinários, campos de concentração e seletividade étnica , tiranos absolutos, nada obedece mais à lógica da contraposição idealizada da evolução das instituições representativas, da liberdade à retribalização pluralista e da alternância dos eleitos livremente para exercer um poder soberano. Agora o amor incondicional ao censor autoritário ou totalitário é a medida da legitimidade para menos e para mais garantida e graças à Lei. Esta mesma que faz da exceção ao sonhado garantismo jurídico tardio a consagração da vontade popular, via aplausos à delegação diretamente proporcional à desinformação algorítmica. O protofascismo de hoje faria Goebbels corar de vergonha diante das novas tecnologias da informação.
Diante da explosão de demandas e problemas de alguma maneira emergentes e em parte por conta das expectativas criadas com a Constituição de Weimar (1918) e do desejo italiano de fundar a República (curiosamente surgida em 1946), legitimaram-se via eleições gerais as figuras políticas salvacionistas fascista e nazista, encarnando também o rechaço à realidade da ditadura do proletariado. Seguiram-se deste ponto, o caminho das urnas aos golpes de estado e de ditaduras cruéis.
Não há no Brasil aqueles contextos do século passado da Alemanha e Itália, somente presentes nas narrativas exageradas de militantes mais sectários em grupos lulopetistas e bolsonaristas.
A tese segundo a qual essas posturas e adjetivações extremadas ocorrem reciprocamente no clima de vazios ou empates hegemônicos entre protagonistas de classe clássicos da luta social difere nas ocorrências históricas. Não é bem o caso brasileiro. Mas a pornochançada política tupiniquim carnavaliza o fascismo (e as desventuras comunistas), desde Plinio Salgado. Aqui a política tomada como guerra atende mais à desorganização das classes. Trabalhadores e capital encontram-se tão fraturados ao ponto de desmobilizar as lutas sindicais e políticas, permitindo uma seletiva e perversa parceria e sujeição à direção do capital financeiro, com degradação industrial, fragmentação cultural e desinformação programadas. Juntas elas controlam e induzem todas as classes e estratos de classe a comportamentos que ampliam o espectro do brasileiro mediano (base de atração de Bolsonaro) ultraconservador, preconceituoso, machista, racista, como bem definido por Ivan Lago ( “O Jair que há em Nós”). Esse o público de vários auditórios bolsonaristas em expansão legitimamente consagrada em votos que trocam democracia por promessa de eficiência, curiosamente, destruindo as intermediações via outorga de grande poder ao grande Pastor.
O lulopetismo e o bolsonarismo têm resíduos de tendências comunistas ou fascistas, mas não se reduzem àqueles grupelhos fundamentalistas, irrisórios e cômicos, embora perigosos, pois golpistas diante do que consideram como decadente “Democracia burguesa”. Ambos configuram uma miscelânea colorida de ressentimentos, ignorância e desatualizações, mais que certezas doutrinais de esquerda e de direita. Lula está mais para cor de rosa que vermelho e Bolsonaro é verde, mais que amante fascio do negro. Ambos desbotados. São neste 2022 grandes líderes com tendências populistas delegativas e em prol do mercado eficiente, e do mesmo mercado encharcado de experts e desregulamentações neoliberais.
Bolsonaro, autoritário, cria factoides e inventa extemporaneamente uma curiosa mas real ideologia de ultradireita, apelando para bandeiras tradicionais dos costumes nas quais ele não acredita. Lula, ilusionista, flerta com duas esquerdas equivocadas, uma radical e sem votos e outra pragmática sempre pronta para trocas assimétricas entre lucros estratosféricos para os mais ricos e algum dinheiro para políticas de integração social voltadas aos mais necessitados. Ambos com projetos confusos e improváveis a longo prazo, com baixa capacidade de reinventar um futuro que garanta ao Brasil um grande lugar como país forte e respeitado mundialmente.
Mas a política é a arte do possível e das escolhas, mesmo se as alternativas não preencham os requisitos para desacelerar o ódio e a desclassificação recíproca, dificultando compreender uma sociedade profunda, castigada e sofrida que não cabe no maniqueísmo do fazer política menor, tendente a ser mais controlada e induzida por informações vagas, ambíguas, mentirosas, no rítmo algorítmico da realidade virtual.
Então, lembrando que o “diante do quase impossível” não obsta tentar o possível, no dia 30 a aposta em Lula parece ser a menos problemática para um país que necessita resgatar a linguagem da política, tão danificada neste governo, para melhorar a comunicação entre os interessados em praticar a democracia.
Bolsonaro é a expressão do investimento na política da guerra aos inimigos, ampliando a deslegitimação institucional de maneira a poder reforçar seu modus operandi autocrático.
Lula significa um esforço de repaginação social, sobretudo, de reconstrução biográfica, a ser desenvolvida numa corda bamba: o projeto transformista II (repetição), embora com um amplo envolvimento de atores sociais dispostos a experimentar alternativas para um mundo cuja história não termina na democracia liberal fatigada diante de um mercado canibalizado. Um caminho superativo de repetições que não alienem mas ensina a exercer outras histórias para um novo modo de vida.
Dia 30 votar 13 significa dizer: Lula, malgrado tudo você não me subtraiuva esperança. Pois você ainda tem a sorte e a chance de ajudar o Brasil a voltar a trilhar o processo social da construção democrática, um objetivo tão difícil quanto quase impossível, pois tortuoso e pleno de armadilhas. Dentre elas, a elevação do controle absoluto de mentes e corações previstos por George Orwel (1984), talvez timidamente, para o que a “Democracia sem Direitos” ou a sociedade com “Direitos sem Democracia”, no dizer de um cientista, parece apontar, legitimando os ditadores com muitos votos, Constituição e instituições a desserviço da civilização.
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