O Estado brasileiro tem sofrido a mais descarada e intensa distorção desde a redemocratização do País. O presidente Jair Bolsonaro manipula o aparato estatal para seus interesses particulares, produzindo continuamente novos abusos, numa sequência aparentemente interminável de excepcionalidades, e suscitando, por sua vez, respostas das instituições que, infelizmente, não têm sido as melhores, com outras tantas excepcionalidades. O cenário é desolador.
O abuso desta semana consistiu em usar a máquina pública para atacar, em duas novas frentes, os institutos de pesquisa. A partir de uma representação feita pela campanha de reeleição do presidente, o Ministério da Justiça requisitou à Polícia Federal a abertura de inquérito contra os institutos. Além disso, o presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Cordeiro, abriu uma investigação contra o Datafolha, o Ipec e o Ipespe.
São duas ações inéditas e absolutamente ineptas para produzir os supostos efeitos legais pretendidos. Seu objetivo é outro: disseminar desconfiança e criar ainda mais confusão na campanha eleitoral. Usa-se supostamente a lei – o Ministério da Justiça falou em apurar eventual crime de divulgação de pesquisa fraudulenta, o presidente do Cade disse haver indícios de cartel na atuação dos institutos – para atacar a própria lei. Afinal, um dos objetivos do Direito eleitoral é prover um ambiente de tranquilidade durante a campanha, justamente o que o bolsonarismo deseja impedir com suas contínuas excepcionalidades.
Diante dessas inéditas ameaças, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, considerou que houve por parte da Polícia Federal e do Cade uma “flagrante usurpação das funções constitucionais da Justiça Eleitoral” e determinou, de ofício, a interrupção das duas investigações. Pode-se entender, não sem razão, que Alexandre de Moraes fez o que lhe cabia fazer: eliminou, pela raiz, mais uma ameaça do bolsonarismo à tranquilidade das eleições.
Entretanto, não se pode ignorar que, com a atuação de ofício do presidente do TSE interferindo em órgãos que não estão sob a alçada da Justiça Eleitoral, o bolsonarismo também atingiu seu objetivo. Obteve mais um caso em que a Justiça agiu de forma excepcional, além de seus limites legais, o que não apenas dá munição ao discurso de que Jair Bolsonaro estaria sendo indevidamente perseguido por Alexandre de Moraes, como produz um enfraquecimento do próprio Judiciário. As instituições republicanas devem atuar sempre, sem exceção, dentro da lei. A legitimidade de sua ação inclui necessariamente o estrito respeito aos procedimentos e às esferas de atuação. Ainda que possam ser justificadas pelas circunstâncias, excepcionalidades sempre desgastam o Judiciário.
O bolsonarismo impõe às instituições uma disjuntiva rigorosamente antirrepublicana: a omissão ou o abuso. Suas constantes e crescentes ameaças são tão abusadas – não há rigorosamente nenhum limite – que uma resposta dentro da lei, de acordo com os ritos previstos, parece ser insuficiente, mais se assemelhando a uma omissão. Ou seja, para não serem coniventes, as instituições são instadas a uma atuação fora dos padrões, fora dos ritos.
A ameaça desta semana é, por si só, muito grave. O governo federal conseguiu envolver até o Cade nas eleições. Toda a máquina pública – mesmo aqueles órgãos que, em tese, dispõem de autonomia e não têm relação com temas eleitorais – está orientada para reeleger Jair Bolsonaro. Mas o problema do bolsonarismo é muito mais sério do que uma campanha eleitoral sem escrúpulos. São quatro anos em que, de forma ininterrupta, Jair Bolsonaro tem imposto essa disjuntiva entre omissão e abuso sobre o funcionamento de todo o Estado Democrático de Direito.
Não há respostas fáceis para lidar com esse problema. De toda forma, há um requisito para seu enfrentamento. É preciso reconhecer, sem meias palavras, o problema: há um presidente da República deturpando profundamente a lei e a máquina pública.
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