Ligado ao presidente Juscelino Kubitscheck (1956-61), Victor Nunes Leal integrou o Supremo Tribunal Federal entre 1960 e 1969, quando foi aposentado compulsoriamente, com base no AI-5, pela ditadura militar.
A experiência de visitar seu precioso livro "Coronelismo, Enxada e Voto", publicado em 1949 (reeditado pela Alfa Omega em 1975 e pela Companhia das Letras em 2012), obra clássica da ciência política, é prazerosa e angustiante. Quando trata da notória corrupção da magistratura no Império, por suas vinculações políticas, o autor faz a ressalva: "como o problema não é de ordem puramente legal, ainda hoje é encontradiça a figura do juiz politiqueiro, solícito com o poder, ambicioso de honrarias e vantagens, embora muito mais extensas as garantias que desfruta".
Se o coronelismo é sistema político essencialmente governista, Nunes Leal anota não ser possível apagar as rivalidades locais, razão pela qual também existem coronéis oposicionistas, "a quem tudo se nega e sobre cujas cabeças desaba o poder público, manejado pelos adversários".
Para o autor, uma "excursão pelo interior do Brasil" equivale a uma "incursão no passado nacional". A geografia mudou bastante desde a publicação do livro, o processo de urbanização é desordenado, caótico, a economia patina, a pobreza se eterniza, o passado se reinventa.
As ameaças de demissão e o assédio eleitoral praticados por chefes e empresários locais, nas periferias e no agronegócio, tementes da vitória de Lula no segundo turno, reafirmam o sentimento de que coronelismo não é coisa de outrora.
Milícia é releitura do banditismo regional de antigamente. O governante se apropria do poder intimidatório da Polícia Federal e da máquina pública para obter votos.
O presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), que pretendia, ao arrepio da lei, "investigar" institutos de pesquisa, é "menino" do ministro Ciro Nogueira, coronel no Piauí e capacho civil de Jair Bolsonaro.
O mesmo tribunal que afasta governador oposicionista suspeito de fazer "rachadinha" livra a cara do filhote do presidente suspeito de fazer "rachadinha".
Em nota de rodapé, Victor Nunes Leal noticia que associações religiosas e sacerdotes pregavam em Sergipe que eleitores católicos não poderiam sufragar os candidatos da UDN, "sob as penas de pecado mortal", o que o Tribunal Superior Eleitoral não considerou ser, em 1947, uma coação.
A Igreja Católica foi aparentemente domesticada pela República. Mas outras igrejas cristãs ainda tangenciam o território temerário do fanatismo, da exploração da miséria e do abuso estrutural do poder político, econômico e religioso nas eleições.
Muito além das "pregações" obscenas da pastora perversa e pervertida Damares Alves, eleita senadora, há um arranjo político e jurídico, repleto de suspeições e escândalos, a ser desconstruído pelo TSE e pelo Supremo.
O governo adula pastores de todos os gêneros —inclusive os que se notabilizam pela pilantragem e pelo charlatanismo. Oferece cargos e concessões. Cria isenções tributárias. Em troca, recebe apoio político criminoso.
O templo se converte em comitê. O evangelho se transforma em proselitismo eleitoral. O presidente golpista da República enriquece pastores corruptos que multiplicam as mentiras e a demonização do candidato adversário, engendradas no Palácio do Planalto, em cultos, programas de televisão e redes sociais.
Luís Francisco Carvalho Filho
Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (2001-2004).
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