terça-feira, 11 de outubro de 2022

PADRE KELMON E O CONTO DO VIGÁRIO

Consuelo Dieguez, PIAUÍ

Na quinta-feira, 29 de setembro, a equipe da campanha do presidente Jair Bolsonaro chegou apreensiva ao estúdio da TV Globo, onde se realizaria o último debate dos candidatos à presidência da República antes do primeiro turno. As pesquisas indicavam a possibilidade de o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vencer o pleito em primeiro turno. Lula aparentava calma e sorria. Bolsonaro mantinha o semblante fechado e tenso.

O quadro começou a mudar quando o mediador do debate, o apresentador William Bonner, chamou ao púlpito uma figura excêntrica, praticamente desconhecida do grande público. Era Kelmon da Silva Souza, que se apresentava como “padre Kelmon”. Até então, ele tinha aparecido apenas no horário eleitoral gratuito e no debate entre os presidenciáveis no SBT, do qual Lula  não participou. Vice-presidente na chapa de Roberto Jefferson, do PTB, Kelmon surgiu no páreo depois que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) confirmou que Jefferson, condenado por corrupção no escândalo do mensalão e cumprindo pena em regime domiciliar, estava inelegível até 2023. Ciente de que teria o registro de sua candidatura negado, o político se apressou em ser substituído pelo seu vice.

No debate, Kelmon apareceu com uma vestimenta extravagante, sem identificação com qualquer seita ou religião: túnica preta, touca preta e branca com cruzes bordadas e, pendurado em um cordão prateado, portava um crucifixo vagamente semelhante à cruz da Igreja Ortodoxa. Estava sentado ao lado de Bolsonaro, com quem trocou algumas palavras. Ao ser chamado por Bonner para fazer sua terceira pergunta a um dos candidatos, escolheu dirigir-se a Lula.

Os dois ficaram frente a frente no púlpito. O que veio a seguir não foi exatamente uma pergunta, mas um ataque.  Com um tom de voz brando, lendo a pergunta, Kelmon acusou Lula de ser “chefe do maior esquema de roubo e corrupção da história mundial”. E atacou: “Explique para o povo por que tanta gente próxima a você foi presa, te denunciou. Você era o chefe do esquema?” Lula respondeu dizendo que foi absolvido em todos os processos. Na réplica, Kelmon seguiu:  “O senhor é o responsável pela corrupção no Brasil, todos nós sabemos que o senhor cometeu esses atos. O senhor é um descondenado. O senhor nem deveria estar aqui como candidato a presidente da República. Por que o senhor está aqui? A população precisaria saber a verdade. O senhor é cínico. Mente. O senhor é um ator.”

Lula, que vinha se saindo bem desde o começo do debate, embora sob fogo cerrado de Ciro Gomes (PDT), Luiz Felipe d’Avila (Novo)  e do próprio Bolsonaro, reagiu diante do neófito. Elevou o tom de voz: “Olha, mentiroso é você, irresponsável.” Kelmon prosseguiu. “O senhor deveria respeitar um padre”. Lula, mais alterado, rebateu. “Que padre? O senhor está fantasiado, rapaz”, disse. Kelmon o questionou. “Fantasiado? O senhor me respeite”.

A discussão subiu de tom, um começou a falar sobre a fala do outro. Enquanto Bonner tentava acalmar os dois candidatos e devolver a ordem ao debate, o presidente do PTB de São Paulo, Otávio Fakhoury, que participava do evento como convidado, olhou para os coordenadores de campanha de Bolsonaro – o especialista em pesquisa e marketing político Fabio Wajngarten, o responsável pela mídia digital da presidência, Sérgio Lima, que compõe o chamado gabinete do ódio, e o filho Zero Dois do presidente, Carlos Bolsonaro. Os três sorriam. O mesmo ocorria com Bolsonaro. 

Numa conversa por telefone três dias após o primeiro turno, Fakhoury me contou que a estratégia de transformar o “padre” em candidato presidencial tinha partido de Jefferson. O político já sabia que não seria autorizado a concorrer, mas achava necessário ter alguém entre os candidatos que funcionasse como linha auxiliar de Bolsonaro, que estaria em um ambiente hostil. A percepção de Jefferson era de que Lula estaria preparado para responder de forma dura às provocações dele, Jefferson, e as de Bolsonaro, mas não as de um padre, mesmo que não fosse reconhecido por qualquer igreja no Brasil.

O que Jefferson e Fakhoury não esperavam era a reação de Lula. “A reação destemperada do ex-presidente foi a melhor surpresa da noite”, festejou Fakhoury, investigado no Supremo Tribunal Federal no  inquérito das fake news. “Lula foi filmado em rede nacional atacando um ‘padre’. Batendo na mesa, apontando o dedo na cara dele”, me disse. Segundo Fakhoury, a reação na mesma hora tirou pontos de Lula, nas pesquisas realizadas pelos bolsonaristas. “Pontos que teriam sido preciosos para, talvez, fazê-lo ganhar em primeiro turno.”

Para Fakhoury, Jefferson usou a mesma “tática” das feministas. “Quando uma mulher fala alto com um homem e um homem reage no mesmo tom, as feministas logo chamam o sujeito de misógino. Com o padre foi a mesma coisa. Para parte da audiência, o Lula destratou um padre, ainda que o padre o tivesse atacado antes”, avaliou.

Kelmon da Silva e Souza foi treinado para aquele momento pelo próprio Roberto Jefferson, na sua casa, em Levy Gasparian, no interior do Rio de Janeiro . Durante dias o político, com experiência de anos como advogado criminalista, fez o que se chama de media training com o “padre”. Jefferson preparou as perguntas e ensaiou com Kelmon como deveria ser sua atuação.  Como está em prisão domiciliar, Jefferson só pode receber visitas com autorização judicial – exceto de familiares. Segundo Fakhoury, Kelmon visitava-o na condição de “padre”. (Durante o debate, tanto a Igreja Católica quanto a Ortodoxa brasileiras se apressaram a negar que Kelmon fizesse parte de qualquer uma delas.) 

Segundo Fakhoury, Kelmon se ordenou “padre” por uma igreja peruana, que ele não soube precisar qual. “Ele não é um padre apostólico romano. Sei que ele tem os papéis dessa igreja e que está há dez anos no Brasil. Ele tem, inclusive, uma obra social na Bahia, numa comunidade na Ilha da Maré, próxima a Salvador”.  Contou ainda que Kelmon é do Movimento Cristão Conservador, MCC, abrigado dentro do PTB. “O Roberto se tornou evangélico por causa da esposa. Nomeou Kelmon de vice para que sua chapa tivesse um evangélico e um ‘padre’ na chapa. Quando foi impedido de concorrer, nomeou o seu pastor vice do ‘padre’”. O pastor-candidato é Luiz Claudio Gamonal, também do PTB.

Além do treinamento de Jefferson, Kelmon também recebeu informações do próprio Fakhoury que poderiam ser usadas “em caso de emergência”: que a candidata do União Brasil, Soraya Thronicke, “é dona de uma rede de motéis no Mato Grosso” e que Ciro Gomes “é defensor do aborto”. Enviou um vídeo por WhatsApp do então candidato pelo PDT falando sobre o assunto. (Thronicke tem dito que a rede de motéis pertence ao marido. Ciro, questionado sobre o aborto pelo próprio Kelmon no debate da CNN, disse que o aborto é uma tragédia e que a legislação brasileira, como está, é a resposta possível para a questão) Ao final, embora Thonicke tivesse até chamado Kelmon de “padre de festa junina”, a decisão foi não atacar os demais candidatos, pois eles também já estavam fazendo o serviço de pular na jugular do petista. “Estavam todos atacando Lula. Ciro é malandro. Viu que tinha cheiro de sangue no ar e tratou de atacar também. É igual urubu”, comparou.

Com a confusão provocada por Kelmon, os coordenadores da campanha de Bolsonaro e o pessoal do PTB saíram da Globo otimistas. Fakhoury contou que, depois do debate, ele e alguns amigos foram jantar com Kelmon e deram “boas risadas”. Revelou que na hierarquia da tal igreja, os padres têm que ser celibatários. “Quando nós perguntamos para ele se ele era mesmo celibatário, Kelmon respondeu que era virgem na frente e atrás. Sabe como é, né? Tem sempre essa história de que muitos padres são gays”, riu e complementou. “Mas o Kelmon ‘nunca escorregou no quiabo’.”

O efeito “padre” se fez sentir no dia seguinte ao debate. A campanha de Bolsonaro encomendou uma pesquisa por telefone e, segundo Fakhoury, o presidente tinha subido nas pesquisas, podendo chegar no domingo a 44% dos votos. “Eu falei com o Fabio [Wajngarten] e o Sergio [Lima]  e eles estavam muito animados”, disse. A assessoria de Kelmon foi procurada pela piauí, mas afirmou que o padre está em retiro espiritual e impossibilitado de dar entrevista.

Consuelo Dieguez

Repórter da piauí desde 2007, é autora da coletânea de perfis Bilhões e Lágrimas e de O Ovo da Serpente, ambos da Companhia das Letras

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