Soado o apito final do primeiro turno, a vitória é reclamada pelos dois lados da torcida. Os números do placar são implacáveis e não mentem sobre o triunfo do petista dentro da arena presidencial bolsonarista, que tinha o mando de campo e amargou uma derrota. O candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, obteve sua maior votação histórica, alcançando 57.258,115 mil votos (48,43%) contra 51.071,277 (43,20%) do capitão do time adversário, Jair Bolsonaro. Uma vantagem de 6 milhões de votos, que representa mais 25 milhões do que Fernando Haddad obteve em 2018.O jogo de ida mostra uma dianteira expressiva em se tratando de uma disputa fora de casa, contra uma equipe conhecida pelas jogadas desleais, faltas graves, catimbas, desrespeito às regras e diante de cartolas desonestos e homens da mala circulando por vários vestiários com dinheiro do orçamento secreto. Após a retrospectiva da campanha, sobressai o tento marcado pelo petista contra as firulas da máquina pública que foi utilizada despudoradamente em demagogias eleitorais e populismos fiscais. Por apenas 1,6% dos votos (perto de 1,8 mi) a classificação não foi antecipada na primeira rodada. A diferença mostra que Jair Bolsonaro precisa treinar mais para conquistar, em três semanas, perto de 75% dos 8,5 milhões votos que foram destinados a Simone Tebet (4,9 mi/ 4,16%) e Ciro Gomes (3,5 mi/3,04%). Lula está muito mais próximo de botar a mão na cobiçada taça. Uma virada de placar em favor de Bolsonaro na busca do bicampeonato é bem mais difícil.
O corinthiano Lula recorreu a metáfora futebolística para qualificar o segundo turno: “É apenas uma prorrogação”. Ouviram-se alguns apupos da galera à esquerda que torcia pela goleada sem necessidade do tempo extra. No returno vencerá aquele que melhor se movimentar e encorpar o time com reforços na janela de transferência de votos, aberta após a desclassificação de Simone Tebet (MDB), Ciro Gomes (PDT), Soraya Tronicke (União Brasil) e outros aspirantes com desempenho aquém dos exigidos na primeira divisão eleitoral. São perto de 10 milhões de torcedores que frequentaram os estádios democráticos, mas evitaram a polarização entre os dois classificados da extrema-direita e da esquerda. Simone Tebet já empunha a bandeira lulista e irá vestir a camisa da legalidade: “reconheço nele o compromisso com a democracia”. Ciro Gomes, apesar dos hematomas de confrontos pretéritos, dessa vez não fez cera. Seguiu a organizada do PDT e se sentou no setor reservado à esquerda. Bolsonaro, um vira casaca que veste qualquer camisa, se mexeu pela extrema-direita, mas terá de suar muito em outros setores do campo em razão do ‘score’ desfavorável. Bolsonaro bateu bola – óbvias e já contabilizadas no placar – com Romeu Zema (MG), Cláudio Castro (RJ) e cooptou Rodrigo Garcia (SP), estrela rebaixada no PSDB. Contra Bolsonaro pesam as caneladas democráticas, as ameaças de roubar a bola, de abolir o VAR definitivamente e/ou agredir juízes. Bolsonaro se insurge contra todas as decisões da arbitragem que renderam cartões amarelos e, até agora, nenhum vermelho. Uma tolerância incompreensível diante do jogo agressivo e reincidentemente desleal.
No intervalo, Bolsonaro abandonou as ofensas da geral contra as urnas. Passou a xingar os institutos de pesquisas, que apresentaram dados estatísticos sobre os gramados eleitorais. Aliados e o clã já gritaram por punição, CPIs e até expulsão das empresas de pesquisas de opinião pública. A velha tática de quebrar o termômetro para cessar a febre. As prospecções eleitorais não são oráculos, casa de apostas ou jogo de prognósticos. Elas apenas registram o humor dos torcedores, que é fluído, muito dinâmico e oscila conforme o desempenho do time em campo. Além de informar a população a partir de bases científicas confiáveis, são úteis para orientar e pautar as estratégias e jogadas das campanhas eleitorais. Os holligans da política bolsonarista, violentos e autoritários, apedrejaram as pesquisas, chamaram o VAR punitivo e sacaram seus instintos primitivos para ensaiar mais um apagão informativo, desejando censurar os institutos. Quanto ao favoritismo do PT na aferição presidencial o resultado foi dentro margem de erro. Engrossar as vaias contra metodologias científicas é encorpar as táticas do obscurantismo, do negacionismo e da mentira.O próprio capitão do time golpista anunciou que teria 60% dos votos no primeiro turno. O DataBolsonaro, como quase tudo que diz, era furado. Em que pese o alarido das organizadas na presidencial, no Congresso o voto conservador avançou, mas não na proporção alardeada. A concentração da esquerda também cresceu. A radiografia final das estatísticas eleitorais está longe de amparar a histeria que contagiou as análises iniciais e monopolizou as redes sociais a partir de uma leitura apressada do placar das urnas.
No campo ao lado, Congresso Nacional, com o jogo encerrado, pode se constatar um ligeiro aumento da arquibancada da direita a despeito da conduta de seus cartolas e atletas. O Partido Liberal, pelo qual Bolsonaro disputou as eleições e cujo presidente Valdemar Costa Neto foi preso por corrupção no mensalão, sagrou-se como a maior bancada, com 98 deputados. Inequivocamente, houve transferência de parlamentares do antigo PSL (União Brasil) de Bolsonaro em 2018 para o PL agora. Mas não superou o PFL nos gloriosos tempos de Fernando Collor de Mello, quando chegou a ter 104 deputados. Outros combinados de centro, como PP, Republicanos, PSD e MDB aumentaram suas bancadas e totalizaram pouco mais de 1 centena de cadeiras. Alguns galácticos amorais do bolsonarismo se elegeram: Eduardo Pazuello, Ricardo Salles, Carla Zambelli, entre outros. De outro lado, na ôla de Lula, o PT aumentou sua participação em 12 numeradas e chegou a 68 deputados federais. Na turma do descenso a queda provocou fraturas expostas no PSDB, que virou um timeco de várzea com apenas 10 deputados e a perda de 19 posições. O União Brasil (fusão do PSL com DEM) foi desfalcado em 24 titulares, o PSB emagreceu a representação em 18 deputados e conta agora com apenas 14 cadeiras e o PDT perdeu 2 vagas e conta agora com apenas 17 posições. O PTB, Novo, Solidariedade, PMN, Democracia Cristão e outras 10 agremiações foram varridas do mapa eleitoral, degolados pela cláusula de barreira. Ficam sem as mordomias do camarote político, como bilheteria pública, tempo de TV e os debates.
Vítima da divisão histórica entre seus cartolas e da própria torcida, o PSDB, dentre as grandes agremiações, caminha para o precipício do Z4 rapidamente. Criado em 1988 por atacantes habilidosos que desarmaram a ditadura, o partido dominou os campos paulistas por 28 anos e elegeu duas vezes o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, referência no respeito às regras democráticas. Por pouco o partido não elegeu Aécio Neves em 2014 que, ao não respeitar o resultado das eleições, alimentou crises que redundaram no impedimento de Dilma Roussef. O ‘offside’ desestabilizador é apontado por muitos técnicos como a gênese da atual retranca institucional. Rebaixado na Câmara dos Deputados, o PSDB não elegeu nenhum senador. Ainda torce por Eduardo Leite no Rio Grande do Sul. A última estrela tucana, governador Rodrigo Garcia (SP), se revelou um cabeça de bagre e deu um carrinho por trás na legenda ao anunciar o apoio isolado a Bolsonaro no 2 turno. A bola nas costas da cúpula do partido gerou um salseiro digno dos tucanos e as penas voaram. Garcia foi depenado pelos ex-presidentes da sigla. Tasso Jereissati, José Aníbal, Teotônio Vilela Filho e Pimenta da Veiga anunciaram o reforço no time de Lula. FHC, adversário histórico, compreendendo a tática democrática foi conciso: “Neste segundo turno voto por uma história de Lula pela democracia e inclusão social. Voto em Luiz Inácio Lula da Silva”.
No Senado a renovação do elenco foi de apenas 1/3. O saldo das substituições não altera de maneira relevante a correlação de forças. Foi no Senado que prosperou a CPI da Pandemia que provocou severos desfalques na equipe do capitão em 2021. Há vitórias simbólicas do bolsonarismo como o astronauta Marcos Pontes em São Paulo, Damares no Distrito Federal e Rogério Marinho no Rio Grande do Norte. Sérgio Moro quer voltar aos hooligans, mas é considerado traidor pela organizada histriônica de Bolsonaro. É um traíra contumaz: traiu a Lava Jato, traiu Bolsonaro, traiu o Podemos, traiu Álvaro Dias, traiu os paranaenses e agora se trai ao apoiar um governo corrupto. É o “juiz ladrão” que expulsou Lula ilegalmente e deu a vitória a Bolsonaro no tapetão em 2018. Houve baixas também. Foram barrados nas urnas os ex-ministros João Roma (BA) e Gilson Machado (PE) e os ex-líderes Major Vitor Hugo (GO) e Carlos Viana (MG). No saldo da eleição dos 27 senadores, o bolsonarismo também perdeu cadeiras. Em 5 estados foram eleitos senadores de oposição: Alagoas (Renan Filho), Maranhão (Flávio Dino), Ceará (Camilo Santana), Pernambuco (Teresa Leitão), Piauí (Wellington Dias). Beques do Bolsonarismo, como Fernando Bezerra Coelho, Fernando Collor de Mello, Elmano Ferrer e Roberto Rocha vão para o banco. No contra-ataque, bolsonaristas conquistaram 6 cadeiras que pertenciam a oposicionistas no Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, São Paulo e Rondônia. Nos demais estados a troca se deu por nomes ideologicamente do mesmo espectro e não alteram a composição da Câmara Alta. Apenas em 5 estados houve reeleição, com 3 aliados de Bolsonaro (AP, MT e RJ) e dois oposicionistas (AM e BA).
A eleição também exibiu as contradições brasileiras depois de mais de 686 mil mortes pela Covid-19. A cúpula da CPI da Pandemia que balançou a meta governista e provocou sérias contusões em Bolsonaro, goleou na eleição. O presidente da CPI, Omar Aziz foi reeleito senador. O senador Otto Alencar, do departamento médico da CPI, conquistou mais um mandato na Bahia. Randolfe Rodrigues, vice-presidente da Comissão, é um dos coordenadores da campanha de Lula e o relator, Renan Calheiros, elegeu, com folga, ao Senado, o filho em Alagoas e levou como líder para o segundo turno o governador Paulo Dantas com quase 47% dos votos válidos. Eduardo Braga (AM) conquistou uma surpreendente vaga no segundo turno. A zaga de pernas de pau da tropa de choque bolsonarista, formada por Luís Carlos Heinze e Marcos Rogério, enfrentaram adversidades na eleição. Heinze amargou uma humilhante 4 colocação na disputa pelo governo do RS e Marcos Rogério ficou na segunda colocação e irá disputar um novo turno para o governo de RO. Miguel Coelho, filho de Fernando Bezerra Coelho, líder de Bolsonaro que se notabilizou pelos ataques de cólera na CPI, ficou na lanterna na disputa pelo governo de PE. As ‘doutoras’ Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro (capitã cloroquina), defensoras da cloroquina, não foram escaladas para a Câmara dos Deputados. Encorparam a lista de futuros gandulas políticos Bibo Nunes, Eduardo Cunha, Fabrício Queiroz, Sérgio Camargo, Douglas Garcia, a ex-esposa Ana Cristina Valle e outras irrelevâncias silenciadas pelas urnas.
Os maiores vencedores da eleição, até aqui, foram a democracia e a urna eletrônica, tantas vezes chutadas por Jair Bolsonaro que, em desvantagem e o cronômetro correndo contra, voltará a atacá-las novamente. É uma questão de tempo ele tentar roubar o apito. Lula é a última linha de defesa no desarme das fintas fascistas. Se removido, o que é improvável, mas não impossível, as virulências vistas até agora seriam apenas o pontapé inicial para erguer o estádio autoritário. Estão em risco os todos os demais Poderes, especialmente o STF e os juízes que enquadraram Bolsonaro nas quatro linhas, a imprensa livre, as universidades públicas, a saúde universal e gratuita, a integridade do meio ambiente, as liberdades individuais, o voto popular, o processo eleitoral, os direitos coletivos e toda a institucionalidade consagrada pela Constituição de 1988. O Estado se tornaria um campo privado para perseguições, intervenções, malversação, arbítrios e a morte da Constituição Cidadã. Algo como Luís XIV na França monárquica. Nosso cotidiano seria sepulcral com mais mortes, armas, mentiras, militarização, segredos, milícias, corrupção, fome, desemprego e abandono. O resultado definitivo desse jogo da democracia contra a tirania está nas mãos da torcida.
– Weiller Diniz é jornalista
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