Guerra de nervos: Lula precisa buscar o centro, e Bolsonaro tem a missão de virar mais de 6 milhões de votos
Jair Bolsonaro surpreende com a votação expressiva de aliados nos principais estados e no Congresso, mas Lula ainda é o favorito para o segundo turno. Para ganhar, o petista precisa incorporar o centro ao seu projeto e deve se preparar para uma sociedade transformada desde que foi presidente, marcada pela ascensão conservadora
Foi uma vitória com sabor de derrota. Essa é a melhor definição para o triunfo do ex-presidente Lula no último domingo, quando confirmou o favoritismo e superou Jair Bolsonaro por 6,1 milhões de votos na corrida à Presidência. Obteve 48,43% dos votos válidos, a menos de dois pontos percentuais de encerrar a disputa. O gosto amargo se deve aos 43,2% conquistados por Bolsonaro. Os números superaram a previsão dos institutos e vieram acompanhados de uma grande votação de apoiadores do presidente no Congresso. E ele também comemorou a fácil reeleição dos seus aliados no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, além do primeiro lugar conquistado no primeiro turno por seus apoiadores aos governos de São Paulo e Rio Grande do Sul. Conseguiu eleger 20 senadores numa disputa por 27 vagas e fez uma bancada de 99 deputados só no seu partido, o PL. Com 51 milhões de votos, o chefe do Executivo ultrapassou sua própria votação em 2018 (49,2 milhões).
Lula, que conseguiu 57,2 milhões de votos, acordou na segunda-feira precisando refazer seus cálculos e rever sua estratégia para confirmar a vantagem no próximo dia 30. Deve enfrentar uma onda conservadora que se mostrou alinhada ao governo, ainda que o capitão pessoalmente sofra uma alta rejeição. Pela primeira vez na redemocratização, um presidente não encerrou o primeiro turno na dianteira. Mesmo assim, Bolsonaro saiu das urnas como uma figura forte, capaz de manter o protagonismo na cena política mesmo que perca o cargo no Planalto. Os eleitores recusaram Bolsonaro, mas abraçaram sua pauta. É preciso enxergar o fenômeno do bolsonarismo além do seu líder.
O panorama apertado aumentou o desafio dos dois líderes, que já estão em uma corrida de obstáculos para garantir mais apoios. O QG de Bolsonaro tem a ambiciosa aposta de confirmar os votos no Sudeste e ainda conquistar 6 milhões de votos extras lá. O presidente está otimista não apenas porque saiu na frente em três dos quatro estados da região, ao contrário do que indicavam as pesquisas. Para ele, pesa também o endosso de Romeu Zema, em Minas, onde perdeu, e de Rodrigo Garcia, que, embora tenha ficado de fora do segundo turno, tem ascendência sobre cerca de 500 prefeituras em São Paulo, inclusive 180 geridas por tucanos. A atração dos dois foi um strike na campanha lulista.
Na manhã de terça-feira, o PT falava em procurar Garcia, mas Ciro Nogueira, manda-chuva do Centrão, já estava no Palácio dos Bandeirantes negociando a entrada do governador no palanque bolsonarista. “Como a eleição do governo de SP está, na percepção geral, nas mãos de Tarcísio de Freitas, a conversa entre Ciro e Garcia tratou de uma ‘transição tranquila’ e da manutenção de projetos e de espaço para o PSDB na gestão. Foi um acerto de conveniência para o governador e o presidente. Logo depois, Garcia declarou apoio “incondicional” a Bolsonaro.
“Bolsonaro tem que aprender uma lição. Ele que vá pegar votos daqueles que foram responsáveis pelas mortes na pandemia”
Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à Presidência
O mandatário também espera atrair mais votos em outras regiões. No Sul, terá palanques sólidos e, assim, vê chances de ampliar a vantagem conquistada no dia 2. No Paraná, Ratinho Jr., reeleito no primeiro turno, declarou apoio instantâneo ao capitão. Em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, os candidatos dele aos governos estaduais estão na dianteira — Jorginho Mello e Onyx Lorenzoni , respectivamente. Já no Nordeste, a pretensão é furar a “muralha vermelha”, sobretudo usando a religião. “Ele vai intensificar agendas com evangélicos. Haverá, por exemplo, uma grande reunião de lideranças em Recife, dia 11. Nessa, o Lula já dançou”, alfineta o pastor Silas Malafaia. Mas Bolsonaro deu uma declaração desastrosa associando o voto lulista na região ao analfabetismo, que foi logo explorada pelo petista. Na avaliação da campanha bolsonarista, a região merece uma atenção especial porque há chances de Lula ampliar localmente a distância para Bolsonaro, que foi de 12,9 milhões de votos no primeiro turno. Bolsonaro sonhava em contar com o palanque de ACM Neto, candidato ao governo da Bahia, terceiro maior colégio eleitoral do País. O ex-prefeito, no entanto, já mandou avisar que não colará sua imagem à do presidente. Na mesma linha de ACM Neto, o União Brasil liberou os diretórios e filiados.
Além do recorte regional e por religião, o núcleo político da campanha do capitão insiste na moderação do discurso, para ampliar o apoio no centro e tentar atenuar a vinculação de Bolsonaro aos seus repetidos ataques à democracia. Ele, em outra ponta, já deu sinais de que explorará o apoio que recebeu de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, símbolos da Lava Jato, para fortalecer seu arsenal contra Lula no debate sobre a corrupção, ainda que ele mesmo tenha telhado de vidro pelos vários escândalos na Saúde e no MEC, com pastores-lobistas pedindo barras de ouro ou dinheiro em pneus. Na primeira semana de campanha, as redes foram tomadas pela discussão sobre a “agenda moral”. Preocupados, aliados de Bolsonaro tentaram conter o impacto de um vídeo antigo em que ele participa de uma sessão da maçonaria – o que pode ofender ao mesmo tempo católicos e evangélicos. “O povo precisa olhar para a prática. Bolsonaro foi quem falou que colocaria um ministro evangélico no STF e colocou; que prometeu abrir espaço para as igrejas e abriu”, defende Eduardo Gomes, líder do governo no Congresso.
Enquanto Bolsonaro conseguiu abrir a campanha com as fotos de apoiadores poderosos nos estados do Sudeste, Lula contou com a influência dos quadros mais tradicionais do PSDB. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso divulgou uma mensagem apoiando o petista “por uma história de luta pela democracia e inclusão”.
José Serra também declarou voto no ex-presidente, ressalvando que em São Paulo apoiará Tarcísio de Freitas. O apoio da velha guarda tucana, no entanto, não foi suficiente para dissipar o choque do apoio de Rodrigo Garcia a Bolsonaro, que levou à debandada de parte do secretariado do governador, inclusive do ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. A campanha petista ainda conta, no entanto, com Geraldo Alckmin, o ex-governador de São Paulo e vice da chapa, que migrou para o PSB. Uma das ideias é mantê-lo fixo no estado, para peregrinar pelo interior, onde o antipetismo é mais forte. Em solo paulista, Lula precisa, pelo menos, “empatar tecnicamente” com Bolsonaro para garantir uma vitória menos apertada, segundo aliados. No Rio, a campanha será coordenada pelo prefeito da capital, Eduardo Paes. O pessedista cobrou empenho na eleição de Lula de deputados estaduais e federais fluminenses.
“Lula venceu em 9 dos estados com maior taxa de analfabetismo, no Nordeste. Outros dados econômicos agora são inferiores na região”
Jair Bolsonaro, candidato à reeleição
Outro grande desafio de Lula é reduzir a hegemonia de Bolsonaro no Centro-Oeste, onde o agro predomina. “Já temos reuniões marcadas com o setor sucroalcooleiro, que deseja discutir a questão dos biocombustíveis. O carro a hidrogênio tem base no etanol. Lula já prometeu fortalecer os renováveis no Brasil. Isso, certamente, vai entrar para o plano de governo”, defende o senador Carlos Fávaro. O congressista do PSD acredita que o apoio de Simone Tebet, natural do Mato Grosso do Sul, pode fortalecer Lula. A senadora declarou apoio, mas evitou a foto oficial com o petista. “Ainda que mantenha as críticas que fiz ao candidato Lula, depositarei nele o meu voto porque reconheço nele o seu compromisso com a democracia e com a Constituição, o que desconheço no atual presidente”, afirmou a senadora. (Sua vice, a tucana Mara Gabrilli, defendeu o voto em branco no segundo turno.)
Todos os senadores do PSD marcaram um ato de apoio a Lula, em São Paulo, apesar de a sigla no estado integrar a campanha de Tarcísio de Freitas. No MDB, além dos 11 diretórios que apoiam Lula, outros cinco darão suporte ao petista. Apesar das adesões, o ex-presidente tem sido cobrado para dar garantias de que adotará um programa econômico responsável fiscalmente, o que se choca com as inúmeras declarações de que acabará com o teto de gastos. A vitória agridoce no dia 2 indica que Lula ainda precisa convencer empresários de suas intenções. No dia seguinte à eleição, com a votação expressiva da base bolsonarista, os indicadores econômicos reagiram positivamente.
A Bolsa subiu 4,8% e o dólar caiu 4%. Os principais títulos da dívida recuaram com a confirmação da continuidade da disputa e a expectativa de que os dois candidatos devem se movimentar para o centro. “O mercado reagiu de acordo com suas convicções de que nada de drástico acontecerá já. Mas a economia pode patinar a depender das movimentações. É hora de entender melhor o que houve”, diz Horácio Lafer Piva, ex-presidente da Fiesp, ressaltando a importância da democracia.
A declaração de Lula na noite da eleição, de que o segundo turno “é apenas uma prorrogação”, choca-se com essa necessidade de ampliar o leque de alianças. O “cheque em branco” que o petista imaginou ganhar na votação, dizendo que bastava mostrar o histórico de sua gestão bem-sucedida, não se materializou. E o presidente já afirmou a interlocutores que não anunciará antecipadamente seu ministro da Economia.
A única sinalização é de que se discute uma âncora fiscal para substituir o teto de gastos. É pouco para um partido que mostrou um péssimo histórico econômico na gestão Dilma Rousseff, com políticas iniciadas no segundo governo Lula. O petista poderá se beneficiar, por outro lado, de sua imagem cristalizada de pai dos pobres e criador de programas sociais, que as urnas corroboraram. Mas ele precisará ter uma prática mais pacificadora do que demonstrou no passado ou mesmo na campanha. Bolsonaro, nesse quesito, parecia ter feito a lição de casa e adotou um tom até humilde após a divulgação dos resultados. Mas voltou a atacar as urnas eletrônicas em uma live, evidenciando que dificilmente sustentará uma guinada na sua conduta. Sua dificuldade será se posicionar mais estrategicamente do que Lula para conquistar novos eleitores.
Um ponto de atenção para a campanha petista é o risco da abstenção, que tradicionalmente é maior no segundo turno. Vários estados já escolheram seus governadores, o que pode desestimular o comparecimento às urnas. Se esse fenômeno for maior no Nordeste, vital para Lula, será um problema para sua candidatura. No corpo a corpo do segundo turno, o ex-presidente também precisará superar o antipetismo, que é uma das explicações para a votação expressiva que os apoiadores de Bolsonaro tiveram pelo País. A busca pelo voto útil foi contraproducente. O assédio desleal a Ciro Gomes fez o pedetista reagir atacando Lula por causa dos escândalos de corrupção e pode ter antecipado o voto de simpatizantes dele a Bolsonaro. Esse “voto útil às avessas” é uma das explicações para os resultados discrepantes entre os dados dos institutos de pesquisas e do TSE. Lula, com 48,43% dos votos válidos, praticamente reproduziu os dados apresentados pelo Datafolha (50%) e Ipec (51%), dentro da margem de erro. Bolsonaro, com 43,2%, teve um desempenho superior ao que o Datafolha (36%) e o Ipec (37%) apontavam um dia antes, fora da margem de erro. O cientista político Antonio Lavareda diz que é natural revisar metodologias, critica o erro de tomar os números como “prognósticos” do resultado final e aponta que a cifra de ausentes dificilmente é captada pelas sondagens. A migração dos votos nulos e de indecisos e dos eleitores que optavam por Ciro Gomes e Simone Tebet, que tiveram votação inferior à antecipada (conquistaram 3% e 4,16%, respectivamente), explicariam parte dessa discreprância, dizem os institutos. A diferença fez os bolsonaristas atacarem os pesquisadores, assim como haviam feito com as urnas eletrônicas. O ministro da Justiça, Anderson Torres, mandou a PF instaurar um inquérito. É mais uma demonstração da truculência bolsonarista. Isso não altera a normalidade do processo eleitoral, comprovado pelo TSE nos testes realizados na urnas, inclusive o de biometria solicitado pelo Exército.
Na última quarta-feira, o Ipec voltou a apontar Lula como favorito com 55% dos votos válidos, contra 45% de Bolsonaro. Vencer será mais fácil do que governar. Sua eventual gestão não terá vida fácil, já que ele enfrentará um Congresso dominado por um Centrão fortalecido, com um número grande de aliados de Bolsonaro (notadamente no Senado). Haverá de fato uma onda bolsonarista dominando a política. A sociedade permanecerá polarizada, já que Bolsonaro, mesmo que perca a eleição, ainda terá influência. Será difícil pacificar o País. E precisará ser enfrentada a crise fiscal contratada para 2023 com as medidas eleitoreiras que implodiram o teto de gastos e melhoraram artificialmente os índices econômicos deste ano. O buraco no Orçamento para o próximo ano é calculado em R$ 160 bilhões. Já Bolsonaro, se vencer, terá a tentação autoritária de avançar contra os demais Poderes – os segundos mandatos sempre são mais perigosos para os candidatos a ditador. Lula, por outro lado, se triunfar, precisará dividir poderes com um Congresso mais refratário. Pode ser um problema, mas esse conflito é uma das belezas da democracia. Ela exige negociação constante e o difícil exercício cotidiano de abrir mão das ambições pessoais, lição que vale para os dois líderes.
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