sábado, 5 de novembro de 2022

ANISTIA, NÃO

Ascânio Seleme, O Globo

É preciso julgar e condenar, ou absolver, os crimes cometidos por Jair Bolsonaro em seus quatro anos de mandato

O cidadão Jair Messias Bolsonaro deve pagar por todos os crimes cometidos pelo presidente Bolsonaro nos seus quatro anos de mandato. Não são poucos, não são banais. Deixar o futuro ex-presidente impune seria um insulto à Nação e um risco enorme à democracia mais adiante, dada a sua capacidade de aglutinação política. Somente listados pela CPI da Covid, são nove os crimes a ele imputados. No total, somam mais de 40. Nenhum deles avançou graças ao procurador-geral Augusto Aras, o mais importante engavetador de processos contra presidentes desde Geraldo Brindeiro. O deputado Arthur Lira também colaborou, sentando sobre 95 pedidos de impeachment originais, sete aditamentos e 47 pedidos duplicados.

O presidente cometeu crimes contra a existência da União, contra o livre exercício dos Poderes, contra o exercício dos direitos políticos individuais e sociais, contra a segurança interna, contra a probidade administrativa, contra a guarda e legal emprego de dinheiro público e contra o cumprimento de decisões judiciais. Dentre todos estes, os mais graves foram as ameaças feitas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, e o apoio e a participação em manifestações antidemocráticas. Ao longo do seu turbulento mandato, Bolsonaro governou de forma arbitrária, usando as forças do Estado em benefício próprio, ultrapassando impunemente todos os limites legais.

As denúncias que foram apresentadas contra ele não prosperavam em razão de motivação pessoal, no caso de Aras, que queria e foi reconduzido ao cargo, ou de motivação política, no caso de Lira, que obteve o maior cheque já dado a um homem público, os R$ 19 bi do orçamento secreto. Havia também, e é tão inegável como necessário dizer, um certo medo de que uma condenação de Bolsonaro ou o encaminhamento de um pedido de impeachment pudessem causar turbulência militar. Medo razoável que volta agora a ser citado quando se refere ao Bolsonaro sem foro privilegiado.

Os militares não assustam mais. Os bolsonaristas Braga, Heleno, Paulo Sérgio e Ramos voltarão para casa e serão esquecidos. Para os demais, a vida segue sob o comando de Lula. O medo com que se quer agora impedir a punição de Bolsonaro é a incitação das massas que ele poderia promover. Pode ser que alguns saiam às ruas para protestar contra eventual punição, mas se não bloquearem ruas e estradas, estarão dentro da lei. Mesmo que causem barulho, mesmo assim é preciso julgar e condenar, ou absolver, os crimes cometidos por Bolsonaro.

No caso da Covid, a CPI do Senado apontou os seguintes crimes cometidos por Bolsonaro: prevaricação; charlatanismo; epidemia com resultado morte; infração de medidas sanitárias; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crime contra a humanidade e crimes de responsabilidade por violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.

Nos outros casos, o presidente é acusado de cometer crimes contra o livre exercício dos Poderes por ameaças feitas contra os Poderes Judiciário e Legislativo; por ameaçar e constranger juiz; por interferir na Polícia Federal; por usar autoridade a ele subordinada para praticar abuso de poder (troca no comando das Forças Armadas); por incitar militares à desobediência; por infração à ordem pública (atos contra medidas de isolamento); por hostilidade contra nação estrangeira; por xenofobia (contra médicos cubanos), homofobia, misoginia e racismo; por proceder de modo incompatível com o decoro; por desobedecer decisão judicial (plano de proteção indígena); por fake news.

E há também, não vamos esquecer, os crimes eleitorais recentemente cometidos, começando pelos pacotes demagógicos que turbinaram sua candidatura já na partida. Bolsonaro cometeu abuso de poder político e econômico; se serviu do descarado apoio e constrangimento religioso produzido por pastores evangélicos contra fiéis; foi beneficiário das centenas de casos de assédio patronal-eleitoral de empresários criminosos Brasil afora; valeu-se como nunca antes visto das fake news; e usou a Polícia Rodoviária Federal para na última hora impedir eleitores nordestinos de votar.

Não se pode perdoar um criminoso desta magnitude. Não estamos saindo de uma ditadura, ao contrário, por pouco não entramos numa. Não cabe, portanto, anistia. Anistia, não. Bolsonaro tem que pagar pelos seus crimes.

Os votos de Bolsonaro

A cédula 22 teve 58,3 milhões de votos no domingo passado. Jair Bolsonaro deve ter obtido uns 15% ou até 20% disso, o que significa alguma coisa entre 8 e 12 milhões de eleitores. Não, isso não está escrito em lugar nenhum. É apenas uma percepção, porque nem eu nem você acreditamos que quase a metade dos brasileiros que foram às urnas são extremistas, querem uma intervenção militar com tanques nas ruas, exigem a prisão de Alexandre de Moraes, o fechamento do Supremo e a manutenção do presidente derrotado no poder pela força. Claro que não. Mesmo entre os legítimos bolsonaristas de extrema-direita, poucos são ideológicos, sabem o que ditadura significa e do que ela é capaz. A maioria é formada apenas por tolos (como aqueles que bloquearam estradas e se manifestaram diante de quartéis), que seguem essas lideranças podres acreditando sinceramente que a vida pode melhorar debaixo de uma bota. Pensam que sabem o que pensam. Não sabem.

Os votos de Bolsonaro 2

Um exemplo recente de quem saiu das urnas com mais de 51 milhões de votos e hoje quase nem consegue se eleger deputado mostra como são voláteis os eleitores brasileiros. Aécio Neves foi derrotado por Dilma Rousseff por pouco mais de três pontos em 2014. Três anos e ele já havia perdido totalmente a sua relevância política em razão dos erros que cometeu. Primeiro, ao não aceitar a derrota e, depois, ao ser gravado pedindo R$ 2 milhões a Joesley Batista. Acabou virando bolsonarista. Desmilinguiu-se. Bolsonaro, por sua vez, não aceitou a derrota para Lula e em breve saberemos muito mais sobre os segredos e sigilos de seus quatro anos de mandato, dos seus zerinhos e de toda a sua turma.

Vigiar, não ouvir

Depois do vergonhoso discurso que fez, sem reconhecer a derrota, sem parabenizar o adversário vitorioso, sem desarmar os ânimos golpistas da sua tropa, desrespeitoso, covarde e minúsculo, Bolsonaro deveria ser ignorado. Vigiado, sim. Ouvido, não. É importante que cada um dos seus passos seja escrutinado, que suas decisões, mesmo as mais corriqueiras, sejam fiscalizadas até que ele saia pela porta dos fundos no dia 1º de janeiro. Mas, sem lhe dar vez, sem difundir sua palavra, de resto grosseira e muitas vezes escatológica.

Um dia depois do outro

Entre as muitas delícias produzidas pela derrota de Jair Bolsonaro e de seu projeto autoritário, o vazamento da sua irritação com Roberto Jefferson e Carla Zambelli foi a melhor. O presidente culpou os dois pela sua derrota. Os maiores aloprados da base bolsonarista, as duas criaturas que mais se parecem com o criador, os soberbos bajuladores acabaram levando a culpa pelo desfecho eleitoral. Os espetáculos que armaram (duplo sentido), segundo o equivocado pato manco, pode ter impedido a sua vitória.

Imagem fala

A fotografia da fala minúscula de Bolsonaro no Alvorada é reveladora. Fora os óbvios generais palacianos e o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, os outros que cercavam o presidente derrotado eram praticamente todos desconhecidos, caras novas de um Ministério fraquíssimo já antes da eleição. Houve um destes, postado logo atrás do orador, que de tanto fazer careta virou meme. Mas o mais revelador foi o semblante do Braga Netto, o ex-candidato a vice derrotado junto com Bolsonaro. Atônito, olhar no vazio, senho fechado, não escondia o desgosto de quem perdeu uma bocona que iria durar quatro anos.

Imagem fala 2

Durante mais de uma hora na tarde de terça-feira, as TVs de notícias a cabo transmitiram a imagem do púlpito onde Bolsonaro faria o seu discurso 48 horas depois da derrota. Ao fundo, um espelho refletia os jornalistas que aguardavam sem imaginar que presenciariam o mais pífio discurso da História da República. Via-se também um grupo grande de assessores palacianos que faziam… nada. Exatamente nada. Eram 15 homens e duas mulheres conversando em rodinhas, se mexendo de lá para cá, sem fazer qualquer coisa. Fora uma mulher de paletozinho azul, que ajudava os jornalistas a fixarem seus microfones no pedestal, os outros compunham aquele seleto grupo de assessores de p* nenhuma, conhecidos pelo carinhoso apelido de “aspones”.

Sentando com Lula

Essa turma do Centrão não rasga dinheiro. Antes mesmo do domingo eleitoral terminar, Lula já havia recebido pelo menos meia dúzia de telefonemas de próceres da aglomeração suprapartidária que sempre apoia quem tem a chave do cofre. Na segunda, os contatos se multiplicaram e depois do discurso minúsculo de Bolsonaro, na terça-feira, a avalanche começou.

Uma semana

Em uma semana, Lula já governou mais e fez mais política do que Bolsonaro em quatro anos.

Generais

Nenhum dos generais que contribuíram para fomentar o espírito golpista de Bolsonaro, que apoiaram seus ataques às urnas, que fingiram não ver suas ameaças à democracia e às instituições, poderá na reserva descansar com a dignidade de um Leônidas Pires Gonçalves, que por anos caminhou no calçadão do Leblon com a cabeça erguida de um democrata. Avalista do primeiro governo civil depois da ditadura, Leônidas deu exemplo para a caserna. Exemplo que alguns generais bolsonaristas não entenderam.

Xandão, o Grande

O Brasil deveria agradecer fortemente ao ministro Alexandre de Moraes por seguir sendo uma nação democrática. Uma estátua sua deveria ser erigida em cada uma das capitais brasileiras. Mesmo que isso não ocorra agora, no futuro ocorrerá. A História não esquecerá.

Pazuello

O general da reserva Eduardo Pazuello foi eleito deputado federal, e não senador como dito aqui equivocadamente na semana passada. Ele terá um mandato de apenas quatro anos e não de oito, para a sorte do Rio.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário