segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

DISCURSO É IMPECÁVEL, MAS HÁ DESAFIOS

Lauro Jardim, O Globo

MP que desonera combustíveis expõe a dificuldade que presidente terá em aliar equilíbrio fiscal e políticas sociais

Os discursos de posse de Lula, no Congresso e no Parlatório, foram impecáveis. Nada do que interessa foi esquecido. Estava lá o apelo à união nacional. Como em 2003, o presidente falou da sua obsessão em acabar com a fome no Brasil. Deu também o destaque devido à questão ambiental. Enfatizou a chaga que é a desigualdade absurda do país. Lula reservou ainda um espaço generoso para a obrigatória pauta da inclusão e da diversidade — neste sentido, pela primeira vez uma posse presidencial tem a cara do século XXI.

Os dois textos, lidos em cerca de uma hora no total, por um Lula com voz firme são, portanto, peças bem escritas, abrangentes e acertam ao tentar mandar o recado de que a “disputa eleitoral no Brasil acabou”.

Quatro anos atrás, o presidente que tomava posse jogava na cara dos brasileiros um discurso noutro tom. Não pronunciou uma mísera vez as palavras “desigualdade” e “fome”. Nem que fosse por formalidade pregou a união nacional. Em vez disso, despejou à plateia temas inéditos numa cerimônia de posse: Jair Bolsonaro chegou a proclamar que aquele era o dia em que o país “começaria a se livrar do politicamente correto” e que um dos seus objetivos era o “combate à escola sem partido”. Eram essas algumas das prioridades.

O avanço, ao menos de propósitos, é inegável. Mas não basta. Na vida real, o buraco é mais embaixo. O próprio discurso de Lula no parlatório dá uma pista disso.

Já no terço final de sua fala, o presidente disse que “é hora de voltar a cuidar do Brasil e (...) baratear o preço dos alimentos”.

Menos de duas horas depois de externar esse desejo, Lula assinou um dos seus primeiros atos como presidente, a Medida Provisória que mantém a isenção de impostos federais sobre os combustíveis. A desoneração do diesel foi prorrogada por mais um ano. Para a gasolina, mais dois meses.

E o que isso tem a ver com “baratear os alimentos”?

A MP foi o primeiro revés de Fernando Haddad como ministro da Fazenda. Em nome do equilíbrio fiscal, Haddad era contra a prorrogação. O núcleo político do governo, no entanto, era favorável à edição da medida. Temia que o aumento do preço dos combustíveis (que empurraria para cima o preço dos alimentos que Lula prometeu baratear) desgastaria o presidente já na largada do seu mandato. Nesta disputa, Lula arbitrou desfavoravelmente ao seu ministro mais importante.

Este episódio revela um Lula 3 com um temor que o Lula 1 não parecia ter. Sobretudo entre 2003 e 2005, com Antônio Palocci na Fazenda, o presidente topou um aperto nos gastos que obviamente não resultavam em ganhos de popularidade naquele momento. Mas bancou uma política econômica mais ortodoxa e colheu os frutos dela mais à frente

Agora, talvez pela percepção de que hoje a paciência do brasileiro é menor, não topou bancar esse risco de uma queda em seus índices de aprovação já nos primeiros dias de governo. Aparentemente, o seu tino político indica que não é hora de gastar o seu cacife tão cedo.

Bolsonaro pode estar nas vizinhanças da Disney, mas não está morto. Depois dos dois discursos de ontem, mais do que nunca o capitão parece cheirar a naftalina. Mas para que essa naftalina não volte a atormentar o Brasil, é obrigatório que a inflação esteja sob controle, a economia cresça e a renda do trabalho aumente.

Uma derrota do ministro da Fazenda já no primeiro dia não é determinante para nada. Mas é um sinal de que a palavra de Haddad ainda não é ouvida por Lula como palavra final. Dependendo de como as coisas evoluam, é um problema.

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