Contra herança maldita, a aposta em propostas do passado
Cada época traz consigo os sonhos e os desafios de cada geração. Primeiro presidente eleito democraticamente desde 1960, Fernando Collor iniciou seu discurso de posse perante o Congresso Nacional exaltando a conclusão do longo processo da transição democrática. Olhando para frente, delineou as demais diretrizes de seu autointitulado projeto de reconstrução nacional: “A inflação como inimigo maior, a reforma do Estado e a modernização econômica, a preocupação ecológica, o desafio da dívida social e a posição do Brasil no mundo contemporâneo.”
As preocupações tinham razão de ser. Lá fora, o mundo vivia o contexto da queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Por aqui, Collor prometia “liquidar” a hiperinflação reduzindo o tamanho do Estado e aplicando um choque de liberalização econômica sobre o setor privado.
Fernando Henrique Cardoso recebeu a faixa de Itamar Franco, sucessor de Collor após o processo de impeachment, proclamando a confiança no desenvolvimento do país. O sucesso na implementação do Plano Real e a equalização da dívida externa, bem como as condições internacionais favoráveis, permitiram ao tucano concentrar seu primeiro pronunciamento em temas como o combate à desigualdade, saúde, educação, cultura, direitos humanos e meio ambiente. Após proferir o compromisso como novo presidente da República, FHC falou pouco de economia e muito do social - ironicamente, trata-se do inverso da maneira como os livros de história costumam retratar os seus dois mandatos.
“Mudança” foi a primeira palavra no discurso de Lula em primeiro de janeiro de 2003, há exatos 20 anos. Entre as transformações que pretendia implementar no Brasil, a maior delas seria a erradicação da fome. Em torno do combate à fome, Lula estruturou todas as ações que anunciava para seu primeiro mandato: a reforma agrária, o projeto Primeiro Emprego, a estabilidade macroeconômica, as negociações comerciais e as reformas da Previdência, tributária, política e trabalhista. Em nome da luta contra a fome o petista também prometeu combater a corrupção, a sonegação de impostos e o desperdício de recursos públicos.
Dilma Rousseff iniciou o pronunciamento de posse destacando o feito histórico de ter sido a primeira mulher a ocupar a Presidência da República. Mais do que uma conquista pessoal - ela fez questão de frisar - aquele momento seria um atestado dos avanços alcançados pela sociedade brasileira. E, nesse sentido, seu governo seria de consolidação, complementada com novas ferramentas: reforma política, apoio à produção e à exportação, universalização e melhoria da qualidade dos serviços públicos.
Se Dilma apostava na continuidade, Jair Bolsonaro assumiu o poder das mãos de Michel Temer prometendo a ruptura. Embora prometesse lutar contra a “submissão ideológica” dos governos anteriores, seu discurso foi impregnado de menções religiosas, patrióticas e de referências à liberdade, à família e aos “cidadãos de bem”, além de críticas à “crise ética e moral” enfrentada pelo país. Entre as poucas propostas citadas na sua fala inaugural, prometeu não gastar mais do que arrecadar, simplificar as amarras burocráticas do setor empresarial, descentralizar recursos (lá estava o “mais Brasil, menos Brasília”) e aprovar reformas estruturantes para estimular a produtividade da economia.
De volta ao Congresso Nacional para uma inédita terceira posse presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva proferiu ontem seu discurso mais duro. A referência inicial ao seu trabalho como Constituinte, entre 1987 e 1988, não foi gratuita: Lula atribuiu a si, neste momento, a tarefa de reconstrução do “grande edifício de direitos, de soberania e de desenvolvimento” erguido desde então - e que, na sua visão, foi destruído pelo governo Bolsonaro. Aliás, com variantes de termos como “destruição”, “desmonte”, “desorganização”, “dilapidação”, “rapina”, “esvaziamento” e “ruína”, entre outros, a nova versão da herança maldita foi descrita com cores muito mais fortes.
Para reconstruir, reerguer e resgatar, Lula deixou clara sua aposta em políticas implementadas por ele próprio nos seus dois mandatos anteriores. No pronunciamento do Congresso houve menções ao Bolsa Família renovado, à retomada do Minha Casa Minha Vida e a um novo PAC.
Há também referências a instrumentos muito utilizados na gestão de Guido Mantega na economia: uso de bancos públicos e da Petrobras para induzir o crescimento, valorização permanente do salário-mínimo, políticas de substituição de importações e de conteúdo nacional (em setores como combustíveis, fertilizantes, plataformas de petróleo, chips, aeronaves e satélites) e a revogação da “estupidez chamada teto de gastos”.
Com tantas referências ao passado, sobrou pouco espaço para propostas modernizantes no discurso de posse de Lula 3. Não houve, por exemplo, qualquer menção à Reforma Tributária.
Além das citações à inovação, à transição digital e à ciência e tecnologia, a sustentabilidade foi a área que recebeu maior destaque. Lula acredita nas chances de o Brasil se tornar uma grande potência ambiental, e para tanto menciona as potencialidades da transição energética, da bioeconomia e da mineração, agropecuária e indústria verdes. Importante destacar o anúncio das metas de desmatamento zero na Amazônia e de neutralidade na emissão de gases de efeito-estufa na matriz elétrica.
Na área social, Lula dispõe-se a recompor os orçamentos da saúde e da educação, para recuperar programas como o Farmácia Popular e a ampliação de creches e do ensino integral.
A fala de Lula revela uma crença no papel da recriação dos ministérios especiais para cada dimensão, como Povos Indígenas, Cultura, Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos. Além de uma promessa de restauração de políticas públicas, houve o anúncio da imediata revogação dos decretos de liberação do acesso às armas assinados por Bolsonaro.
Como se viu no passado, os discursos inaugurais são repletos de sonhos e planos. Concretizá-los exige um trabalho árduo. Só assim se constrói e se fortalece a democracia - “democracia para sempre”, como destacou o novo presidente.
*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário