sexta-feira, 30 de junho de 2023

O CUPINZEIRO

Bruno Pires, PIAUÍ

BOLSONARO DESIDRATOU MAIS MÉDICOS E PÔS NO LUGAR UM NINHO DE FALCATRUAS

O inventário do fracasso e das irregularidades do governo Bolsonaro na área da saúde

O médico Juan Delgado lembra até hoje do dia 26 de agosto de 2013. Ele era um dos 96 profissionais estrangeiros que haviam desembarcado em Fortaleza para o curso inaugural do Programa Mais Médicos, criado para atender milhões de brasileiros pobres que vivem nos rincões do país. Ao entrarem na Escola de Saúde Pública do Ceará, os médicos, provenientes de Cuba, Bolívia, Portugal e Espanha, enfrentaram um protesto ruidoso dos colegas brasileiros. Foram xingados, vaiados, chamados de “escravos” e, na hora de ir embora, ainda ficaram retidos mais de quarenta minutos no saguão da escola. Um dos médicos brasileiros mais indignados era a pediatra Mayra Pinheiro, que, no governo de Jair Bolsonaro, tornou-se secretária do Ministério da Saúde e ficou conhecida como Capitã Cloroquina, por sua militância em favor do medicamento ineficaz contra a Covid.

O protesto foi um choque para os estrangeiros, sobretudo porque vinham para o Brasil com a missão de trabalhar em regiões nas quais seus colegas brasileiros não se dispunham a se estabelecer. “Aquela manifestação nos deixou muito chateados”, diz Juan Delgado, graduado na Faculdade de Medicina de Santiago de Cuba. “Estávamos chegando para ajudar o povo brasileiro e nos chamaram de escravos.” A recepção furiosa no Ceará não foi um caso isolado. Desde que fora lançado pelo governo de Dilma Rousseff em julho de 2013, o Mais Médicos virara alvo de entidades médicas, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Médica Brasileira (AMB). As organizações médicas queriam, entre outras demandas, manter uma reserva de mercado e se aliaram a políticos da direita, que, por sua vez, estavam incomodados com a presença maciça de cubanos no programa, pois 70% de seus salários acabavam nos cofres de Havana, nos termos do convênio firmado entre o governo brasileiro e a Organização Pan-­Americana de Saúde.

Apesar da reação contrária, o programa foi um sucesso do ponto de vista da saúde dos brasileiros. No fim do segundo ano, já havia 14 158 médicos distribuídos pelas áreas mais remotas do pelo país. No seu auge, chegou a ter 18 240 profissionais espalhados em mais de 4 mil municípios e vilarejos, assegurando atenção básica a 63 milhões de brasileiros. Até os 34 distritos indígenas da Amazônia, alguns dos quais jamais haviam visto um médico, passaram a ter atendimento. Em mais de mil municípios, o Mais Médicos respondia por 100% da atenção primária em saúde, que fornece prevenção e evita o agravamento de algumas doenças – e, portanto, internações e mortes.

Estudos coordenados pela pesquisadora Leonor Pacheco Santos, da Universidade de Brasília (UnB), examinaram a situação de 1,7 mil municípios brasileiros em que mais de 20% da população vivia em extrema pobreza e em áreas remotas de fronteira. Destas localidades, 1,4 mil tinham o Mais Médicos e 300 não haviam aderido ao programa. As pesquisas mostram que, onde havia o Mais Médicos, cresceu a cobertura de saúde e caiu o número de internações. Nos outros municípios, a situação não permaneceu estável. Agravou-se: a cobertura encolheu e o índice de internações aumentou.

A oposição corporativa e política ao Mais Médicos, no entanto, continuou. Em 2018, Bolsonaro, que apelidara o programa de “Maus Médicos” e chegara a pedir sua suspensão na Justiça, entrou na campanha presidencial prometendo sepultar a iniciativa. “Os cubanos que temos aqui ninguém sabe, na verdade, o que são”, disse, duvidando da qualificação dos profissionais. Ameaçava expulsá-los do país. Quando foi eleito, a Embaixada de Cuba em Brasília antecipou-se e orientou seus médicos a deixar o Brasil. Na época, noticiou-se que cerca de 8,5 mil cubanos deixaram o programa antes mesmo que Bolsonaro tomasse posse – eles respondiam por metade do contingente do Mais Médicos. Depois que foi empossado, Bolsonaro manteve sua oposição ao programa. Disse que “a ideia” do Mais Médicos “era formar núcleos de guerrilha no Brasil”.

Em 1º de agosto de 2019, Bolsonaro e o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta editaram uma medida provisória criando o Médicos pelo Brasil para substituir o programa do PT. Mandetta era muito ligado às entidades médicas, que, de modo geral, aprovaram o novo programa, sobretudo porque era exclusivo para os médicos com registro nos conselhos regionais de medicina do Brasil. Foi o princípio de um desastre que resultou na criação de um ninho de falcatruas, com casos de nepotismo, irregularidades administrativas, denúncias de assédio moral e malversação de verba pública – e prejudicou enormemente o atendimento à saúde dos brasileiros mais pobres.

Tudo começou com a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde, conhecida pela sigla Adaps. Criada em março de 2020 por um decreto presidencial, a agência tinha a missão de colocar o Programa Médicos pelo Brasil em funcionamento e, assim, permitir a extinção do modelo petista. A expectativa de que começasse a funcionar no primeiro ano, refletida na aprovação de um polpudo orçamento de 723 milhões de reais, não se confirmou, e as verbas acabaram sendo remanejadas para outros setores. Mas, com a queda do ministro Luiz Henrique Mandetta em abril de 2020, apenas um mês depois da criação da Adaps, as coisas empacaram já na largada.

O presidente do Conselho Deliberativo da Adaps – o médico Erno Harz­heim, que acumulava o cargo com o de secretário de Atenção Primária à Saúde – correu para montar a direção da nova agência com aliados. Sabia que, diante da saída de Mandetta, todos corriam risco de demissão e achou que era preciso instalar gente de confiança antes de ir embora. Em uma reunião convocada às pressas, Harz­heim aprovou o estatuto da agência, que nem havia sido analisado pela Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, e conseguiu aprovar três nomes para a diretoria da Adaps —Alexandre Pozza, Soraya Andrade e Caroline Martins dos Santos, todos funcionários cedidos pelo Ministério da Saúde. Harzheim perdeu seus dois cargos seis dias mais tarde.

Depois de sua saída, a presidência do Conselho Deliberativo da Adaps foi ocupada pelo novo secretário executivo do Ministério da Saúde: o notório Elcio Franco, o coronel do Exército que ignorou o e-mail da Pfizer oferecendo vacinas contra a Covid e voltou agora ao noticiário, ao ser flagrado num áudio em que sugere a mobilização de 1,5 mil soldados para dar um golpe de Estado e devolver Bolsonaro ao poder. Para auxiliar Elcio Franco, a vice-presidência do Conselho Deliberativo da Adaps coube a Mayra Pinheiro, a Capitã Cloroquina.

A chegada de aliados de Bolsonaro, no entanto, em vez de agilizar a montagem da Adaps para viabilizar o Médicos pelo Brasil, acabou paralisando a agência. Agora sob o comando do general Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde não tinha interesse em mobilizar o SUS, o maior sistema público de saúde do mundo, cuja existência o novo ministro nem sequer conhecia, segundo ele mesmo admitiu publicamente. Além disso, os militares de Pazuello queriam controlar a Adaps, indicando amigos e tomando conta da verba. Mas, como os diretores da agência haviam sido eleitos para um mandato de dois anos, os militares não conseguiram abocanhar a agência – e a deixaram na geladeira.

Assim, criou-se o pior cenário. Quando a pandemia chegou ao país, o Médicos pelo Brasil era uma ficção e o programa que ainda existia, o Mais Médicos do PT, estava em processo de desidratação. Naqueles mil municípios em que o programa respondia por 100% da atenção primária, esse tipo de atendimento simplesmente ruiu. Nos vilarejos onde só havia médicos cubanos, os postos de saúde ficaram desertos. “O Mais Médicos poderia ter tido um papel extraordinário na pandemia”, lamenta Hêider Pinto, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que encerrou seu doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com uma tese sobre o Mais Médicos. “Vários países, como Itália e Estados Unidos, criaram mecanismos para facilitar que médicos estrangeiros atuassem na pandemia. A Itália, inclusive, fez uma cooperação para levar os médicos de Cuba.”

A Adaps só passou a receber um mínimo de atenção do Ministério da Saúde com a queda de Pazuello e a chegada de Marcelo Queiroga, em março de 2021. Elcio Franco, o coronel que deu bolo na Pfizer, foi substituído no comando do conselho deliberativo da Adaps pelo ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, que representava o Rio de Janeiro no CFM, um órgão que, naquela altura, já estava sob domínio do bolsonarismo. Um dos integrantes do Conselho Deliberativo da agência, Mauro Junqueira, que representa o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), definiu a paralisia da Adaps em uma reunião em abril passado nos seguintes termos: “O governo que criou [a agência] quis matar no ninho. Não deixou funcionar.” As primeiras atividades administrativas da Adaps começaram então em setembro de 2021, um ano e meio depois de sua criação. O quadro técnico-administrativo só começou a ser selecionado entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, quase dois anos mais tarde. Mas, quando finalmente a agência começou a virar realidade, abriu-se o capítulo das falcatruas.

Legalmente, a Adaps podia escolher livremente os nomes para os cargos de direção e assessoramento. Mas, para simular ares de rigor, adotou um “processo seletivo” para todos os seus contratados, inclusive os gerentes. Na prática, a seleção funcionou como um biombo para disfarçar a nomeação de amigos e familiares. O diretor-presidente da Adaps, Alexandre Pozza, contratou um instituto para fazer a seleção de 109 profissionais. Optou pelo Instituto Euvaldo Lodi (IEL), do Distrito Federal, onde trabalhava sua própria mãe, Ana Helena Pozza Urnau Silva. Nisso, já cometeu uma infração ao violar duas resoluções que proíbem a contratação de empresas que empregam familiares de seus funcionários.

A seleção dos primeiros 35 ocorreu em dezembro de 2021. O período de inscrição era uma ruína: abriu às 20 horas da quarta-feira e fechou às 23h59 do domingo. Ou seja: os candidatos tiveram apenas dois dias úteis para reunir toda a documentação. Embora os salários fossem bastante atraentes, oscilando entre 11 mil e 22 mil reais, sem contar benefícios extras, o número de inscritos foi ínfimo. Exemplos: para o cargo de “gerente da unidade de recrutamento e seleção” houve apenas quatro inscritos. Para “gerente da unidade de formação, ensino e pesquisa”, foram seis. O cargo que atraiu mais candidatos – o de “gerente da unidade de orçamento, finanças e contabilidade” – chegou a dezenove candidatos. No total, houve apenas 159 inscritos. (Uma comparação: no mesmo ano de 2021, a Polícia Civil do Distrito Federal fez um concurso para agentes e escrivães, com salário de menos de 9,4 mil reais. Atraiu mais de 140 mil inscritos.)

Em consulta a registros públicos e entrevistas com funcionários que passaram pelo crivo da seleção, a piauí constatou que, entre os aprovados, havia amigos dos diretores e dos gerentes, que participavam das bancas avaliadoras. Também foram contratadas pessoas que trabalhavam no próprio IEL, o instituto encarregado de recrutar e selecionar o corpo técnico da agência. Alessandra Campos Castanheira, ex-consultora de negócios do IEL, é fisioterapeuta com MBA em gestão empresarial e passou a comandar o setor de gestão de riscos, normas e projetos da Diretoria da Presidência da Adaps. Neiane da Silva Azevedo Andreato, ex-coordenadora da área de capacitação e consultoria empresarial do IEL, virou gerente de gestão estratégica da Adaps. (Em seu Instagram, ela refere-se à mãe de Alexandre Pozza, o chefe da Adaps, como “minha querida amiga e mentora”.) Apesar de tudo, o instituto diz que não cometeu qualquer irregularidade e tudo transcorreu com normalidade.

O processo de seleção – com a contratação do IEL, a seleção de seus funcionários e as estranhezas sobre prazo exíguo, além do número diminuto de candidatos – resultou numa denúncia de 95 páginas, entregue anonimamente no Ministério da Saúde. O documento afirma que, no rol dos selecionados, há uma lista de amigos de ex e atuais dirigentes da Adaps e chama a atenção para uma coincidência: a contratação de casais, com marido e mulher emplacando em bons cargos. Sérgio Henrique Moreira Cunha ganhou a gerência de recursos humanos e sua mulher, Ketyane Evelin Costa Lima, ficou lotada na presidência.  O gerente jurídico, Thiago Henrique da Silva Machado, marido da coordenadora do núcleo jurídico do Ministério da Saúde durante o governo Bolsonaro, Patrícia dos Santos Marçal, acabou afastado do cargo em razão do conflito de interesses. Eles eram sócios de um escritório de advocacia.

As 95 páginas chegaram ao Ministério da Saúde ainda no governo de Bolsonaro, que repassou a denúncia para o Tribunal de Contas da União. O TCU ainda não a examinou. Em março passado, o governo Lula também recebeu cópia da denúncia. O assunto foi analisado por uma comissão formada por um representante do Ministério da Saúde, outro da Controladoria-Geral da União e um terceiro da Advocacia-Geral da União. Os integrantes da comissão reclamaram que vinham tendo grande dificuldade para acessar informações sobre a seleção, mas, mesmo assim, conseguiram concluir o trabalho no dia 15 de maio. O conteúdo do relatório final não havia sido divulgado até o fechamento desta edição.

À forma polêmica com que os funcionários foram contratados seguiu-­se um ambiente de trabalho tóxico. Em um universo de pouco mais de cem funcionários, a agência foi alvo de 35 denúncias na ouvidoria do SUS, segundo informação da assessoria do Ministério da Saúde. Em conversa com a piauí, três funcionários, que pediram o anonimato para não prejudicar as chances de obter novo emprego em Brasília, deram detalhes dos casos de assédio de que foram vítimas. Um deles foi demitido ao chamar a atenção para o custo excessivo de um projeto de telemedicina. Outro era assediado para desocupar o cargo para o qual fora selecionado e, assim, ceder a vaga a um amigo da diretoria. Um terceiro, lotado na auditoria interna, foi demitido porque seu relatório desagradou à diretoria. Entrou na Justiça e pede indenização de 700 mil reais. O caso está em segredo de Justiça.

Ouvido pela piauí, um funcionário descreve o ambiente que imperava na agência: “A composição do quadro de colaboradores foi pensada para pessoas com alguma ligação familiar, profissional ou de amizade. Muitos aprovados e contratados não tinham currículo para exercer o cargo. Existia perseguição e isolamento quando um chefe ou seu protegido era contrariado. Existiam ameaças, dizendo que ali era CLT e que se a pessoa não estivesse com a atual gestão seria demitida. Falas como ‘Não pode apresentar dados negativos no relatório porque compromete a Adaps’ e ‘Estou dizendo que será assim porque eu sou o chefe’ eram frequentes.” Os casos de assédio moral começaram a ser investigados em um inquérito civil pelo Ministério Público do Trabalho, em Brasília, e as audiências devem começar em breve.

No terreno da proteção aos amigos, apareceu uma suspeita inclusive na gerência de comunicação, chefiada pela jornalista Roberta Teles, profissional conhecida em Brasília. Ela queria um “serviço especializado para concepção de identidade visual da agência” e contratou uma empresa de publicidade que pertence a Ravell Nava, ex-sócio do seu marido. A empresa, Dois Ellis Comunicação, mudou a cor da logomarca da Adaps, que passou de verde para azul, e embolsou 45 mil reais. Teles pediu demissão no dia 13 de abril. Procurada pela piauí para falar da preferência pelo ex-sócio do marido e a natureza do serviço prestado, a jornalista pediu para responder por escrito, mas não enviou suas respostas.

Chama atenção que, depois de toda a letargia na sua implementação, a Adaps fez algumas contratações por dispensa de licitação sob alegação de emergência. Parte dos contratos, no entanto, previa duração de até cinco anos, o que, obviamente, não se enquadra como urgente. O contrato mais caro, de 180 milhões de reais, firmado com a Flash Tecnologia e Pagamentos Ltda, para fornecimento de vale-refeição e vale-alimentação, tem um prazo de 24 meses e pode ser prorrogado por até sessenta meses. A prática é incompatível com a lei de licitações, que prevê um ano co­mo limite para contratos emergenciais, e também com a lei do estatuto jurídico de empresas estatais, que só autoriza até 180 dias. No entanto, no puxadinho privado criado para gerir o Médicos Pelo Brasil, o manual de licitações não previu limite temporal para contratações emergenciais.

Outra suspeita – desta vez, sob exame do Tribunal de Contas da União – investiga se havia servidores cedidos pelo Ministério da Saúde recebendo salário duplo, do próprio ministério e da Adaps, o que é ilegal. “Inadmissível que o cidadão de bem tenha que ver esta ilegalidade e não possa fazer nada”, escreveu, em outubro passado o autor de uma denúncia anônima entregue à ouvidoria do Ministério da Saúde. O denunciante estava preocupado com a imagem de Bolsonaro em pleno período eleitoral. “Nosso presidente não sabe disso, com certeza!!! […] Ao que parece, a agência existe apenas para encher os bolsos de alguns. Ainda acreditando que o governo Bolsonaro não concorda com essa baixaria, desejo que essa situação seja resolvida.”

Não foi. Até o fim do governo Bolsonaro, ninguém mexeu no assunto.

Enquanto a Adaps virava um clube de amigos – formado por meia centena de pessoas que se enredavam em disputas, irregularidades e compadrios –, o Mais Médicos, embora enfraquecido, continuava operando. Em 2020, o primeiro ano da pandemia de Covid, o governo Bolsonaro passou pelo constrangimento político de chamar de volta os cubanos que, mesmo desligados do programa, não haviam regressado ao seu país – entre eles, estava Juan Delgado, chamado de “escravo” ao chegar ao país e que foi escalado para trabalhar no município de Zé Doca, no Maranhão, onde vive desde 2013. Bolsonaro só pôde tomar essa medida graças a uma iniciativa do Congresso Nacional.

Aconteceu o seguinte: na medida provisória que criou o Médicos pelo Brasil, Bolsonaro proibia a contratação dos estrangeiros que faziam parte do programa do PT. O Congresso, no entanto, com receio de deixar enormes parcelas da população pobre sem atendimento, decidiu prever a reincorporação dos cubanos por até dois anos. Por isso, em 2020, o Mais Médicos chegou a reunir um total de 16 539 profissionais, recuperando-se do baque sofrido com a eleição de Bolsonaro.

Ainda assim, o desmazelo com que o programa vinha sendo tratado já havia produzido resultados letais imediatos. Uma reportagem da piauí, publicada na edição de janeiro de 2022, mostrou o efeito da saída dos médicos (cubanos ou não) em municípios pobres e de pequeno porte: o número de mortes evitáveis de crianças de até 5 anos aumentou 40%. Ou seja: o sarampo, a pneumonia e outras doenças tratáveis, voltaram a matar crianças que, se tivessem recebido cuidados simples em postos de saúde com algum médico, poderiam estar vivas. Em alguns municípios, o total de mortes infantis evitáveis chegou a subir quase 60%.

Quando passou a montar seu quadro funcional, a Adaps deveria ter começado a tomar contato com essa realidade dramática para tentar revertê-la. Em vez disso, surgiram as desconfianças de conflitos de interesse na gestão dos recursos financeiros da agência. O presidente da Adaps, Alexandre Pozza, contratou a Maza Invest, de Brasília, para gerir a carteira de aplicações da agência, que chegava a 232 milhões de reais. A suspeita de conflito de interesses apareceu em razão do fato de que Abner Lima de Oliveira, o sócio majoritário da Maza Invest, também é dono de outra empresa, a Quantfort Technology Research and Integration, sediada em Londres, que emprega como diretor um irmão de Pozza, Jose Roberto Cunha Silva Filho. A situação, segundo Mauro Menezes, ex-presidente do Comitê de Ética Pública da Presidência da República, configura conflito de interesses e descumpre o próprio código de ética da Adaps. A piauí procurou a Maza Invest para saber qual a relação entre a brasiliense Maza Invest e a londrina Quantfort, mas a empresa não esclareceu este ponto.

A mecânica pela qual a Maza Invest foi selecionada também chamou a atenção. Na véspera do Natal, em 24 de dezembro de 2021, Pozza mandou uma carta-convite para seis empresas, entre elas, a Maza Invest, que, no entanto, nunca havia gerido um fundo de investimento, segundo consulta pública na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Pozza deu três dias úteis para que as empresas apresentassem uma cotação de preços. Uma semana depois, em 31 de dezembro, uma diretora da Adaps assinou um termo de referência para a contratação de uma gestora, sem informar o volume de recursos que seriam geridos. É um detalhe curioso porque empresas de grande porte tendem a participar apenas de licitações que envolvem valores robustos. No dia 3 de janeiro de 2022, Pozza assinou o aviso de licitação – que, ao contrário da prática mais usual de transparência, não foi publicado na imprensa, nem divulgado na internet. O aviso, que dava quatro dias para o envio das propostas, ficou colado numa parede da repartição, dificultando o surgimento de mais concorrentes. No dia 10 de janeiro, a Adaps abriu as propostas. Havia apenas quatro empresas na disputa – duas de Goiás, uma do Rio de Janeiro e a Maza Invest, de Brasília, que saiu vencedora e foi contratada no dia seguinte.

Em nota, a Maza defende sua posição: “O suposto conflito de interesses, fruto de ilação trazida não prospera. A Maza Invest logrou êxito em processo licitatório pela modalidade de menor preço, estando o contrato em pleno e fiel cumprimento, com resultados visíveis à Administração, e assim permanecerá até o seu término. Se o sócio Abner Lima de Oliveira é detentor de sociedade empresária em jurisdição distinta, no exterior, e com regras jurisdicionais próprias, a Maza Invest não possui qualquer interferência nesta temática.” A Maza Invest só registrou o fundo de investimento da Adaps junto à CVM  e à Receita Federal no dia 24 de março passado.  Escolheu o banco btg Pactual como administrador do fundo. Neste mesmo dia, o conselho deliberativo da Adaps, agora presidido por um indicado do governo Lula, afastou os três diretores da agência para apuração de eventuais irregularidades.

Uma das primeiras medidas tomadas pelos diretores interinos da Adaps foi transferir os investimentos do BTG para o Banco do Brasil.

Com a aproximação da eleição presidencial e o risco iminente de que Bolsonaro poderia perder o pleito, a diretoria da Adaps começou a tomar providências de última hora – nenhuma delas, no entanto, no sentido de aprimorar o atendimento de saúde. Em outubro, no mês da eleição, Alexandre Pozza firmou um acordo de cooperação técnica com a Organização de Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), no valor de 12 milhões de reais. O acordo visava estabelecer “cooperação técnica, científica e cultural”, bem como o “intercâmbio de conhecimentos”.

Na prática, o convênio serviu para dar abrigo aos amigos que, com o fim do governo de Bolsonaro, perderiam seus cargos comissionados em diversos órgãos. Desta vez, os militares também foram contemplados. Em dezembro, a OEI selecionou 23 pessoas para trabalhar como consultores na Adaps por prazos que iam de quatro meses a um ano. Entre os contratados, estava Robson Santos da Silva, o coronel do Exército cuja inoperância no comando da Secretaria Especial de Saúde Indígena está no epicentro da tragédia humanitária dos yanomamis e é objeto de um inquérito civil. Mariana Naime também virou consultora. Ela trabalhou com o ex-preso Anderson Torres no Ministério da Justiça e é casada com o atual preso Jorge Eduardo Naime Barreto, ex-comandante do Departamento de Operações da Polícia Militar em Brasília, suspeito de envolvimento na intentona golpista do 8 de janeiro. Teve lugar ainda para duas funcionárias do Ministério da Saúde, Patrícia Marçal e Lana Aguiar Lima, que ajudaram Raphael Câmara Parente a fazer a cartilha sobre o aborto – que listava os casos em que a prática era permitida, mas usava uma retórica criminalizadora, como dizer que “todo o aborto é crime”.

Procurada pela piauí, a OEI informou, por e-mail, que contratou consultores seguindo critérios de seleção e termo de referência definidos pela Adaps, e que estava rescindindo alguns contratos de consultores. “Não cabe à OEI o controle das ações individuais de eventuais especialistas contratados em projetos da Organização”, disse a entidade, que acrescentou: “A OEI não compactua com práticas indevidas, seja de nepotismo ou de qualquer outra que atente contra o Estado Democrático de Direito.”

Outro negócio de última hora foi selado com o advogado Edvaldo Nilo de Almeida, contratado para mover uma ação judicial contra a União. Em que pese ser abastecida pelos cofres da União e ter um departamento jurídico, a Adaps recorreu ao advogado para tentar obter imunidade tributária na Justiça. Nilo de Almeida é especialista no assunto, já ganhou várias ações da mesma natureza e desfila com desenvoltura pelo meio político. Nas eleições de 2022, foi um dos maiores doadores individuais, abastecendo o caixa de campanha de dezoito deputados e um senador. Quem mais recebeu foi o deputado baiano Elmar Nascimento, líder do União Brasil, contemplado com 150 mil reais.

Contratado no dia 23 de dezembro do ano passado, Nilo de Almeida agiu com rapidez, já que sua remuneração varia conforme o tempo – quanto mais rápida a vitória, maior o percentual que receberá. Assim, protocolou uma ação judicial no dia 12 de janeiro e, no dia 6 de fevereiro, já tinha em mãos uma liminar autorizando a Adaps a suspender o pagamento de tributos. Se vencer ainda neste ano, um relatório da Adaps estima que embolsará 7 milhões de reais em honorários. A piauí perguntou à Adaps se a contratação de um advogado externo era inevitável e quis saber se a agência havia pedido isenção tributária pelo meio mais comum, solicitando a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas). A agência não respondeu. Nilo de Almeida, por sua vez, diz que não seria possível obter o Cebas e que o cálculo de 7 milhões é irreal. O contrato está sob exame da junta jurídica criada para avaliar atos da diretoria da Adaps. “O contrato é legítimo e legal, uma vez que eu fiz essas ações em praticamente todos os serviços sociais autônomos, porque eu criei a tese lá em 2005”, disse o advogado.

O governo Bolsonaro se encerrou no dia 31 de dezembro de 2022 tendo preenchido apenas 4 823 vagas do seu programa Médicos pelo Brasil. Havia mais de mil vagas do programa não preenchidas. É um número muito inferior ao obtido pelo Mais Médicos em seus primeiros anos. Esse resultado pífio é o retrato de uma severa incompetência administrativa e, também, dos efeitos nefastos de uma gestão que se orienta mais por preconceitos ideológicos do que pela saúde dos brasileiros mais pobres. “Foi uma gestão subserviente e refém dos piores interesses privados, que não fez o que precisava ser feito, com o custo irreparável do sofrimento e morte de milhares de brasileiros”, critica Hêider Pinto, da UFBA.

A situação só não ficou ainda mais catastrófica porque o Mais Médicos, apesar de tudo, continuou operando em paralelo. O professor Davide Rasella, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, fez um estudo sobre o impacto que o fim hipotético do Mais Médicos poderia produzir. O estudo, publicado na revista médica BMC Medicine, concluiu que sem os cuidados básicos prestados pelo programa o número de mortes evitáveis de adultos e crianças em todo o país teria subido num patamar entre 27,7 mil e 48,5 mil.

A tragédia é que a desidratação do Mais Médicos ao longo de quatro anos, por si só, teve – e terá, no longo prazo – efeitos dramáticos. Por exemplo: no ano passado, o governo Bolsonaro deixou de preencher um total de 5 mil vagas – 4 mil do Mais Médicos e 1 mil do Médicos Pelo Brasil. A pesquisadora Leonor Pacheco Santos, da UnB, disse à piauí que é possível projetar, com base nas estatísticas do professor Davide Rasella, uma avaliação segundo a qual mais de 22 mil mortes deixariam de ocorrer até 2030 caso esses 5 mil médicos estivessem trabalhando desde o ano passado. A falta de assistência hoje cobrará seu preço lá na frente. Quanto ao Médicos pelo Brasil, os dados são tão escassos e divergentes, que os especialistas não conseguem medir seu impacto. “Isso torna impossível avaliar se o processo de implantação do Médicos Pelo Brasil foi adequado”, diz Leonor Santos.

Para a senadora Zenaide Maia (PSD-RN), relatora da medida provisória sobre o Mais Médicos que tramita no Congresso, o programa de Bolsonaro “falhou totalmente”. Ela comenta: “Se viram algo que precisava ser refeito no Mais Médicos, deveriam ter feito uma medida provisória para aperfeiçoar o programa que já existe e é exitoso.” A senadora ficou inconformada ao saber, numa audiência pública sobre o assunto, que há 6 129 equipes de saúde da família no Brasil sem médicos (toda equipe deveria ter um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e um agente comunitário de saúde). O Ministério da Saúde calcula que, em razão dessa falta de médicos, 38,5 milhões de consultas deixaram de acontecer em um ano. A senadora também lamentou que 686 municípios brasileiros ficaram com vagas de médicos em aberto no âmbito do Médicos pelo Brasil.

Agora, segundo Nésio Fernandes, secretário de Atenção Primária à Saúde, o governo Lula não vai desmobilizar o Médicos pelo Brasil, para não aumentar a desassistência. Mas já relançou o Mais Médicos em março e, no mês seguinte, abriu mais 6 mil vagas, incluindo 1 mil para a Amazônia Legal, a região com a menor cobertura de saúde do país. No segundo semestre, o governo planeja abrir mais 10 mil vagas e introduzir algumas novidades – no campo dos benefícios e da qualificação – para tornar o programa mais atraente aos médicos brasileiros. De início, as vagas serão oferecidas aos brasileiros formados no Brasil ou com diplomas validados no país. Depois, será a vez dos brasileiros formados no exterior e, por fim, dos estrangeiros, incluindo aqueles que não revalidaram seu diploma no Brasil.

O desastre do governo Bolsonaro, contudo, não sensibilizou as entidades médicas, cujo corporativismo parece bem contemplado. Em uma auditoria do programa, o Tribunal de Contas da União refere-se exatamente a esse aspecto ao observar, em tom de crítica, que o Médicos pelo Brasil estava mais preocupado com os médicos do que com os pacientes. “Os objetivos definidos na formulação do Programa Médicos pelo Brasil […] não contemplavam diretamente o cidadão-usuário, abrangendo apenas a cobertura e o trabalho dos médicos que integram o programa”, diz um trecho do acórdão do tcu. Em outro parágrafo, chega a dizer que o programa careceu da “indicação clara de quem será seu público-­alvo beneficiário”.

Com isso, o ânimo que as entidades médicas tiveram para criticar o Mais Médicos e protestar contra colegas cubanos e de outros países não se fez presente diante da inoperância da Adaps e do Médicos pelo Brasil. E não era por desconhecimento. O CFM e a AMB tinham representantes no Conselho Deliberativo da Adaps. “Não acho que houve demora entre a lei que criou a Adaps e o efetivo início do trabalho dos médicos”, diz Alceu Pimentel, conselheiro suplente do CFM na Adaps. “Tudo isso demandou uma série de medidas para a organização do ponto de vista da criação da instituição, do ponto de vista administrativo, do ponto de vista do estatuto. Hoje o Mais Médicos tem 5 mil médicos trabalhando e tem um cadastro de 15 mil que podem ser contratados a qualquer momento.” Sobre as suspeitas de irregularidades, Pimentel disse desconhecê-las. O conselheiro titular da CFM na agência, Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti, não foi localizado. O presidente do CFM, José Hiran Gallo, não respondeu aos contatos da revista.

A posição das entidades médicas sempre priorizou os interesses corporativos. A presença de cubanos não as incomodava do ponto de vista da ideologia, mas por razões mercadológicas. Queriam manter controle do mercado, evitando a presença de estrangeiros – qualquer estrangeiro. O programa de Bolsonaro agradou porque devolvia às corporações médicas o controle do mercado ao proibir a atuação de estrangeiros e, melhor ainda, até de brasileiros formados no exterior sem diploma validado no Brasil. “Isso devolveu às entidades médicas o controle da quantidade de profissionais que existem no Brasil”, diz o professor Hêider Pinto. “A lei que criou o Mais Médicos dava um poder inédito ao Ministério da Saúde para autorizar o exercício da medicina em condições especiais. Eles desfizeram essa grande mudança na regulação da medicina no Brasil.”

Em março, o clima esquentou na Adaps, com o afastamento da direção a pedido do governo Lula. No mês seguinte, esquentou ainda mais, quando o conselho deliberativo considerou que o mandato dos afastados estava encerrado. O então presidente, Alexandre Pozza, reagiu à medida, alegando que seu mandato de dois anos ainda não terminara, mas o assunto virou uma batalha nos tribunais: ele recorreu à Justiça, conseguiu uma liminar para voltar ao cargo, mas tornou a deixá-lo dias depois, quando a liminar foi revogada. Com isso, veio um ciclo de demissões dos amigos e parentes, conduzido pelos diretores interinos. Até o fechamento desta edição, Pozza ainda tentava uma nova liminar na Justiça, alegando ser alvo de “apuração política inquisitorial”. Nem ele, nem as outras duas diretoras, Soraya Andrade e Caroline Martins dos Santos, quiseram dar entrevista. O plano de realizar uma nova eleição para a diretoria da Adaps não havia sido colocado em prática até o fechamento desta edição. Um dos nomes cotados para dirigir a agência é o médico Mozart Sales, um dos idealizadores do Mais Médicos.

Durante os dez anos de existência do Programa Mais Médicos, entre a construção e o desmonte, nunca surgiu um “núcleo de guerrilha” formado por cubanos no Brasil.

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_201 com o título “O cupinzeiro”.

Visualização de dados feita por Andre Spritzer.

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