Chego ao Rio depois de uma longa viagem: ônibus em chamas, densas nuvens de fumaça pairando sobre a Zona Oeste. Apesar do cansaço, detenho-me ouvindo os debates. Sábios conselhos para combater as milícias. Concordo com todos.
Nem adianta acrescentar mais um tópico à receita de segurança. Preciso talvez responder a uma questão: se o problema não começou ontem, por que ao longo destes anos não foi resolvido?
Há 15 anos, formulamos numa campanha política o mapa do controle territorial do Rio pelas milícias e pelo tráfico de drogas. De lá para cá, muita coisa mudou: traficantes compraram territórios das milícias, houve fusões e um crescimento para o interior, sobretudo cidades médias, como Macaé e Angra dos Reis.
O problema parecia mais fácil há 15 anos. Hoje, reconheço uma variável espinhosa: novas comunidades surgem, e as velhas também são assediadas por gente que vem de fora. O Estado precisa estar presente, mas sua estrutura e crescimento simplesmente não dão conta do processo caótico de urbanização. O cobertor é curto demais.
Além disso, há o entrelaçamento de problemas policiais, políticos e jurídicos, tudo combinando para que o crime organizado se fortaleça. O governador eleito em primeiro turno é pateticamente despreparado.
Quando analisou a situação do estado, o então secretário nacional de Segurança, Raul Jungmann, afirmou que o Rio — com polícia, políticos e juízes comprometidos — era o coração das trevas, imagem do romancista Joseph Conrad. Somos a única cidade do mundo que tem uma área chamada Faixa de Gaza: 95 quilômetros, 33 bairros, 1 milhão de habitantes, da Pavuna ao Caju, passando pelo Jacarezinho e pelo Complexo do Alemão.
Sinceramente, hesito sobre a pergunta principal. Como sair dessa maré? Por que nunca saímos dessa maré?
No passado, viajei para Medellín, com outros objetivos, mas também para observar a maneira como reduziram a violência. Há exemplos no mundo de lugares onde o tráfico de drogas existe, mas não ocupa territórios. Pelo menos isso, teoricamente, está ao alcance de um esforço nacional.
Digo esforço nacional porque falamos e gastamos muita energia para defender o sistema democrático. Acontece que ele não existe nas áreas ocupadas do Rio. Lutamos por liberdade de expressão, processos legais, direito do consumidor. Que direito tem o consumidor forçado a comprar gás e inúmeros outros serviços dos milicianos? Como realizar eleições realmente livres numa capital cujo território é dominado pelo crime e os candidatos não podem visitar?
Se a questão do Rio de Janeiro for vista como uma lacuna na democracia brasileira, poderíamos mobilizar todas as forças para abordá-la. Isso é anterior a um plano. Tenho dezenas de ideias para um plano, mas de que adianta um plano apenas no papel?
As pessoas que se contentam com a democracia circunscrita a uma parte do território não imaginam como isso envenena o horizonte e como, num futuro não muito longínquo, a barbárie chegará às suas portas.
Ainda é tempo de uma tomada de consciência nacional. Planos, avanço tecnológico, inteligência — tudo isso conta. Mas pouco vale se continuarmos fingindo que vivemos numa democracia, quando milhões de pessoas são dominadas pelo tráfico e milícia.
Será possível levar a sério um país que ignore essa realidade?
O argumento de que tudo isso é responsabilidade do estado e do governador não se sustenta. A democracia é um bem nacional.
Temos falado tanto sobre Gaza, a trágica Gaza real, lembrando as crianças que morrem em bombardeios. No entanto aqui elas morrem em tiroteios, perdem dias de escolas, dias de brincadeira ao ar livre.
O ataque aos 35 ônibus serviu pelo menos para mostrar a realidade aos distraídos. Apesar de tudo, é mais um aviso ao longo de tantos anos para um país sem soberania sobre seu território.
Artigo publicado no jornal O Globo em 30/10/2023
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