terça-feira, 31 de outubro de 2023

NEM TUDO VAI MAL NA ARGENTINA

Marli Olmos, Valor Econômico

Multinacionais planejaram fazer de Brasil e Argentina uma estrutura única de manufatura, mas a lógica industrial foi muitas vezes atropelada por crises e caprichos políticos

Há poucos dias, o presidente da Renault do Brasil, Ricardo Gondo, mostrou estar ansioso pelo início das vendas no Brasil de um veículo produzido na Argentina. O Kangoo, um modelo multiuso fabricado em Córdoba, será vendido no mercado brasileiro a partir do próximo ano. Essa importação facilitará o movimento no sentido contrário: o envio, para o mercado argentino, de carros produzidos pela Renault na fábrica do Paraná. A exportação a partir do Brasil ficou prejudicada nos últimos dias, segundo Gondo, pela escassez de divisas no país vizinho.

Há quatro meses começou, também em Córdoba, a produção experimental da Volkswagen Caminhões e Ônibus. A montadora alemã vende veículos comerciais na Argentina há 25 anos. Mas até aqui eram importados da fábrica de Resende (RJ). Anunciado no fim de 2022, o novo plano, que vai absorver investimento de US$ 50 milhões, prevê produzir, em Córdoba, a partir do início de 2024, cinco modelos para atender o mercado interno. Dessa forma, a empresa deixará de depender da disponibilidade de dólares no país vizinho para vender seus produtos e ainda o ajudará a reduzir o déficit comercial.

As recentes decisões de Renault e Volks mostram que a indústria automobilística conhece bem as vantagens de produzir num país carente de reservas cambiais e isso, para esse setor, independe de quem seja o vencedor no segundo turno da eleição presidencial em 19 de novembro.

A maior parte das montadoras instaladas no Brasil também tem fábricas na Argentina e faz intercâmbio comercial. Estão, porém, em situação muito mais confortável para receber dólares pelos veículos exportados do Brasil para o outro lado da fronteira empresas que também mandam produtos de lá para cá. Principalmente as que enviam modelos mais caros.

É o caso da Toyota, com toda a produção da picape Hilux feita em Zárate, na província de Buenos Aires. A Ford é um caso à parte. Desde que deixou de produzir no Brasil, há dois anos, a empresa parou, consequentemente de exportar do Brasil e passou apenas a importar do país vizinho a picape Ranger, feita em General Pacheco, região metropolitana de Buenos Aires.

O cuidado em manter produção do outro lado da fronteira foi redobrado nos últimos 12 anos, desde que as reservas argentinas começaram a minguar, independentemente de quem estava no comando da Casa Rosada.

Produzir veículos na Argentina hoje oferece várias vantagens. No mercado interno, carros foram incluídos no “Precios Justos”, um programa federal de controle e congelamento de preços utilizado para tentar conter a pressão inflacionária.

De nove modelos incluídos no “Precios Justos”, seis são produzidos na Argentina (Citroën Berlingo, Fiat Cronos, Ford Ranger, Nissan Frontier, Peugeot Partner e Renault Alaskan) e três no Brasil (Chevrolet Montana, Toyota Yaris e Volkswagen Polo Track).

No início do ano, o ministro da Economia e candidato à eleição presidencial, Sergio Massa, anunciou benefícios fiscais para os veículos exportados que excedessem o total do ano passado (322,2 mil unidades). Com aumento de 6,2% em relação ao mesmo período de 2022, as exportações de janeiro a setembro já alcançaram 245,1 mil unidades, segundo a Adefa, associação que representa o setor. Haverá, portanto, o excedente esperado por Massa.

O Brasil ajuda, e muito, a Argentina a conter a saída de dólares. O país foi o destino de 63,6% dos veículos embarcados pelos argentinos ao exterior no acumulado até setembro, segundo dados da Adefa. Já a Argentina tem perdido espaço nas exportações brasileiras de veículos. Ainda é o principal destino, mas sua participação diminuiu ao longo dos anos. Chegou a 71,2% em 2017 e no ano passado ficou em 27,8%.

Na contramão do que acontece em outros setores, o automotivo terá motivos para comemorar este ano na Argentina. A produção de veículos acumula alta de 18,1% de janeiro a setembro, segundo a Adefa.

Além do peso do Brasil nas exportações, no mercado interno, as vendas a concessionárias registraram alta de 23,5% no acumulado dos nove meses. Favorece o setor um aspecto da cultura argentina, provocado pelos anos de inflação e desvalorização da moeda local: o automóvel serve como porto seguro para quem não confia no sistema bancário para deixar suas economias.

As montadoras não parecem esperar para saber o resultado das eleições. A tendência é continuarem a investir na expansão da produção na Argentina como forma de evitar atropelos no intercâmbio comercial com o Brasil.

A ideia da indústria automobilística de produzir nos dois lados da fronteira ganhou força a partir do tratado do Mercosul, em 1991, que permitiu o intercâmbio comercial livre de tributos.

Os dirigentes globais dessas multinacionais planejaram fazer dos dois países uma estrutura única de manufatura. Mas a lógica industrial foi, muitas vezes, atropelada por crises econômicas, em ambos os lados. E teve, em várias ocasiões, que andar ao sabor de caprichos políticos.

Esses dirigentes aprenderam, porém, a fazer ajustes, “dançar conforme a música”. Desta vez aguardam para ver qual será o tom do próximo tango.

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