terça-feira, 31 de outubro de 2023

O DÉFICIT ZERO E OS TROPEÇOS

Míriam Leitão, O Globo

Haddad tentou justificar a fala de Lula, mas, sobre economia, presidentes não improvisam e não deixam dúvidas no ar

Um Fernando Haddad irreconhecível chegou na entrevista coletiva de ontem. “Querida, faça o seu trabalho”, disse a uma jornalista que estava fazendo o seu trabalho. O ministro passaria os 30 minutos da entrevista tentando fugir da pergunta sobre a fala do presidente Lula de que a meta fiscal não será zero. Ele se referiu a vários problemas existentes, a um que tem solução já encaminhada, e os transformou nos motivos pelos quais Lula disse o que disse. Na verdade, Lula criou um problema ao declarar que a meta não seria zero. Eles podem ter superado esse mal-estar, mas a explicação de Haddad não convenceu.

Haddad escolheu um caminho árduo e tem travado um combate duro para corrigir distorções tributárias, fechar brechas pelas quais as empresas deixam de pagar impostos, propor suspensão de benefícios fiscais inaceitáveis. E desta forma ir aumentando a arrecadação, sem ter que simplesmente elevar a alíquota dos impostos.

O problema é que ele quis atribuir à fala do presidente Lula, na sexta-feira, que a meta fiscal de 2024 não será zero a esse cipoal de privilégios e distorções tributárias. Foi uma declaração descuidada de Lula. Ele só poderia ter dito o que disse se em seguida afirmasse que, em conversa com o ministro Fernando Haddad e a equipe econômica, chegou à conclusão que a meta que está no Orçamento é inatingível e, portanto, estava mandando uma emenda modificativa para o Congresso com a nova meta. Sobre economia, presidentes não improvisam e não deixam dúvidas no ar.

O erro foi do presidente Lula. O ministro Fernando Haddad quis reorganizar a fala do presidente e afirmou que ele se referia a essa perda de arrecadação provocada por decisões anteriores do Legislativo (a lei complementar 160) e do Judiciário, no caso da retirada dos incentivos de ICMS da base de cálculo dos impostos federais. Com a decisão tomada em maio pelo STJ, este problema caminha para a solução. A MP 1185 apresentada pelo governo fecha a brecha pela qual este ano estão saindo R$ 200 bilhões dos cofres públicos.

O que Haddad disse é verdade: tem havido erosão da base tributária por uma série de benefícios dados às empresas ou arrancados por elas através de intermináveis ações judiciais. E sim, este ano a arrecadação está caindo. Não é apenas por isso. A arrecadação caiu até por bons motivos, um deles foi a deflação dos IGPs. A queda da inflação é boa para a economia, mas reduz a receita do governo.

Tudo o que Haddad falou é correto, mas nada do que disse explica a fala do presidente. Não foi por isso que Lula disse que o déficit não seria atingido. Ele estava refletindo uma disputa interna no governo, desde que Haddad estabeleceu essa meta e mostrou disposição para continuar perseguindo-a. Aliás, o ministro repetiu o seu compromisso:

— A minha meta está estabelecida, eu vou buscar o equilíbrio fiscal com medidas justas.

Um caso que ele contou de “uma empresa de cigarros” é mesmo escandaloso e mostra um problema real contra o qual o ministro deve mesmo se dedicar. Essa empresa teria pedido na Justiça, e ganhado, um crédito de PIS/Cofins de R$ 4,8 bi. Ele explicou o que isso significa.

— Os consumidores pagaram o imposto, a empresa recolheu, e agora a Justiça mandou devolver a ela o dinheiro que, na verdade, não foi pago por ela e sim pelos consumidores.

Realmente um absurdo. No mundo inteiro empresas de cigarros pagam mais e não menos impostos. O ministro chamou de “devolução” o que de fato é. Ainda que a Receita não entregue dinheiro à empresa, ela poderá deixar de pagar impostos com base nesses créditos. O que fere os cofres públicos do mesmo jeito.

Tudo isso é sério, grave e verdadeiro. Tem sido parte do trabalho de Fernando Haddad tornar o sistema tributário menos injusto. Ele avança a cada vitória. Na semana passada, a Câmara aprovou a mudança, proposta por ele, que altera a forma de cobrança de tributo dos fundos exclusivos e offshore. Os muito ricos passarão a pagar imposto que nunca pagaram.

O problema é que não foi esta a fonte de irritação do ministro nesta segunda-feira. Também não foi esta a razão que levou o presidente Lula a falar que a meta não será cumprida. O correto teria sido anunciar, ao lado de Haddad, a nova meta. Teria havido menos ruído. Até porque, o governo está de fato derrubando o déficit. Mas o governo se atrapalhou inteiro, criando problema para si mesmo.

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