Das duas Casas saíram bombas fiscais que inviabilizam o equilíbrio dos gastos
O barraco desabou, e o barco (da economia) se perdeu — aqui um pretexto para celebrar Jorge Aragão, agora em remissão do linfoma diagnosticado há quatro meses — quando o presidente da República anunciou a impossibilidade de cumprimento da meta de déficit zero em 2024. Bolsa caiu, dólar subiu, juros futuros avançaram, em reação espantosa, porque rigorosamente ninguém previa equilíbrio nas contas públicas no ano que vem. E a meta nem sequer foi sacramentada em lei, que segue por ser aprovada, como lembram as professoras Mônica de Bolle (Johns Hopkins University, EUA) e Élida Graziane (FGV-SP). O compromisso com o primário zerado foi sempre insistência do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para emprestar credibilidade ao governo e pressionar Câmara dos Deputados e Senado pela aprovação de medidas que tornassem factível o novo regime fiscal.
No fim de agosto, quando o governo encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Orçamentária de 2024, o Brasil soube que a ministra do Planejamento, Simone Tebet, considerava crível um déficit de 0,5% do PIB, com margem de 0,25 ponto percentual para mais ou para menos, como estabelece o arcabouço que substituiu o natimorto teto de gastos. Naquela ocasião, havia tanto colegas de governo quanto parlamentares defendendo o mesmo, para afastar risco de contingenciamento de despesas e investimentos num ano de eleições municipais.
Foi Haddad quem fez questão de manter a meta de déficit zero, sob o argumento razoável de que a flexibilização na origem tiraria incentivo para o Congresso aprovar as medidas econômicas de interesse do governo, quase todas no lado das receitas. A sinalização fez sentido do ponto de vista simbólico, porque na prática o mercado já não cria no alcance da meta. No boletim Focus — a sondagem semanal do Banco Central a instituições financeiras sobre inflação, câmbio, juros, PIB, balança comercial, contas públicas — jamais constou projeção de equilíbrio primário.
Desde o início de junho, as estimativas para 2024 oscilaram entre déficit de 0,7% e 0,8%. Nesta semana, o relatório com base nos dados colhidos até sexta-feira, 27, dia em que Lula tratou da impossibilidade de equilíbrio, a expectativa era de -0,78%; é provável que piore, diante do disse me disse. Até o Comitê de Política Monetária do BC, nos dois últimos comunicados após cortes de meio ponto na taxa básica de juros, chamou a atenção para a importância de perseguir o déficit zero, não de cumpri-lo.
Em setembro, ao fim da reunião que reduziu a Selic para 12,75% ao ano — a taxa passou um ano em estratosféricos 13,75%, mesmo com a inflação caindo a menos da metade no período —, o Copom fez referência ao equilíbrio das contas públicas: “Tendo em conta a importância da execução das metas fiscais já estabelecidas para a ancoragem das expectativas de inflação e, consequentemente, para a condução da política monetária, o Comitê reforça a importância da firme persecução dessas metas”. Anteontem, na primeira reunião após as declarações do presidente da República, a nota foi praticamente idêntica, só com “reafirma” no lugar de “reforça”. Preocupação mesmo demonstrou com o ambiente externo, pressionado pelos juros altos nos Estados Unidos, pelos solavancos na economia chinesa, pelas tensões geopolíticas com nova guerra, agora no Oriente Médio.
— Condições da economia internacional estão entre as razões para não cumprimento da meta. A realidade que se impõe é incompatível com déficit zero — diz De Bolle.
Se demonstrou coerência quanto à percepção sedimentada, não é de hoje, do mercado sobre a meta fiscal, o Copom perdeu a oportunidade de fustigar agentes públicos que têm responsabilidade sobre a política fiscal, mas fingem que não. Ao avisar da impossibilidade de cumprir a meta de déficit zero, Lula estava, em certa medida, denunciando a ação dos que insistem em dividir o bônus, mas se recusam a partilhar o ônus da gestão rigorosa e justa das contas públicas. Refiro-me a Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, e a Rodrigo Pacheco, número um do Senado. Nas duas Casas repousam projetos que ajudariam no equilíbrio das contas. Das duas Casas saíram bombas fiscais que o inviabilizam.
Coube ao titular da Fazenda, em entrevista no início da semana, chamar a atenção para decisões do Legislativo e do Judiciário que têm desidratado a arrecadação, mesmo com a economia crescendo acima do previsto. Somos de um tempo em que expansão do PIB era diretamente proporcional ao recolhimento de impostos. Haddad informou que só a base de cálculo da CSLL e do IRPJ neste ano vem sendo diminuída em R$ 200 bilhões, porque o Congresso derrubou o veto do então presidente Michel Temer a um abatimento previsto na Lei Complementar 160/2017. Uma fabricante de cigarros, continuou, terá direito a crédito tributário de quase R$ 5 bilhões, porque o STF retirou o ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins. Mesmo no projeto de taxação de fundos dos super-ricos a alíquota foi reduzida de 22,5% para 15% na passagem pela Câmara. A credibilidade do Legislativo também está em xeque.
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