quinta-feira, 30 de novembro de 2023

PARA GOVERNAR, MILEI COMEÇA A SE RENDER AO PRAGMATISMO

Opinião Valor Econômico

Senso de realidade passa a ocupar o lugar dos delírios de campanha

O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, definiu o principal ministro de seu futuro governo, o da Economia, Luis Caputo, que ocupou o Ministério das Finanças no governo liberal de Mauricio Macri. A opção por representantes, em sua equipe, da “casta política” que prometeu varrer do poder indica que o senso de realidade começa a ocupar o lugar dos delírios de campanha. Milei parece ter se dado conta de que as únicas forças importantes nas quais poderá se apoiar para enfrentar uma crise monstruosa são o PRO, de Macri, e seus aliados. Se Milei ganha mais condições de governar com isso, também adia ou enterra a possibilidade de dolarizar a economia argentina no curto prazo - uma alternativa cheia de riscos, cujo fracasso levaria o país diretamente à hiperinflação.

Milei nomeou Caputo ontem, logo após um périplo pelos Estados Unidos, em encontros com o Fundo Monetário Internacional, o Tesouro e o Departamento de Estado americanos. Ainda sem detalhar seu plano econômico, o presidente eleito pousou em Buenos Aires anunciando que a Argentina viverá um período de “estagflação” - no caso, recessão com inflação alta. Prometeu “usar todos os meios para deter a emissão de moeda” e tornar a inflação civilizada em 18 a 24 meses. Haverá um choque econômico, de contornos ainda não definidos, em que a sequência de medidas será vital.

O câmbio não será uniformizado e liberado sem que haja um plano de estabilização consistente, defendia Caputo em análises de sua consultoria Anker (Clarín, ontem). O problema que a equipe de Milei considera o principal é o que fazer com as Leliqs, letras de curto prazo do Banco Central, que superam em muito a base monetária e pagam juros ao redor de 300% ao ano - semelhante ao overnight brasileiro na época da hiperinflação. É por esse canal, um deles, que os governos anteriores sustentaram déficits públicos crescentes, financiando gastos e criando mais inflação, que chegou a 143,7% em outubro.

Caputo teria mencionado na visita a Washington um ajuste fiscal de 5 pontos percentuais do PIB no déficit primário, algo muito mais radical do que qualquer coisa que o FMI exigiu nos acordos feitos com a Argentina - o mais recente assinado e negociado pelo próprio Caputo. Isso significa zerar o déficit e transformá-lo em superávit, o que só é possível com um ajuste drástico de tarifas públicas e cortes radicais nos gastos da máquina.

Há certo sentido na inclinação de aliados de Macri em utilizar o radicalismo de Milei para impulsionar medidas muito duras no início de mandato. Entre os fatores que derrotaram o governo liberal de Macri, um dos principais foi seu gradualismo na retirada dos subsídios - e, no meio do caminho de seu programa de estabilização, houve o afrouxamento das metas de inflação quando o índice de preços sequer tinha baixado a dois dígitos. Macri não tinha maioria então no Congresso, assim como Milei não tem agora, embora possa chegar lá com apoio do PRO.

A escassez de dólares é um grande obstáculo a qualquer plano, porém Milei acredita que não haverá piora aguda no curto prazo. O cronograma de desembolsos com o Fundo poderá ser refeito, assim como a instituição já havia empurrado para 2024 o calendário de pagamentos do governo de Alberto Fernández, que criticava duramente o FMI por ter concedido empréstimos a Macri.

Ontem, Milei disse a respeito do programa com o FMI que “em princípio, se nos dão a rolagem dos débitos e os termos do acordo são mantidos, será um bom pontapé inicial”. O FMI tolerou todos os descumprimentos do acordo pelo governo peronista, e seguirá tolerando porque a ortodoxia de Milei provavelmente tem poucos reparos a fazer nos termos do entendimento em vigor e seu principal eixo - o controle das contas públicas e o fim da emissão monetária inflacionária.

Ainda ontem, Milei foi duro com governadores que se queixam de não ter dinheiro para pagar o funcionalismo. “Cortem outros gastos e paguem salários. Não há mais dinheiro”, afirmou. “Acabou a história do déficit fiscal”. O ajuste das tarifas, inevitável para melhorar as contas do Estado, dará um impulso à inflação, ao mesmo tempo que o freio nas emissões monetárias elevará as taxas de juros (hoje de 133%, negativas) e reduzirá as atividades econômicas. O PIB será negativo em cerca de 2% este ano e talvez mais negativo em 2024, ano para o qual Milei prevê “estagflação”.

Se Milei parece ter desistido da dolarização a curto prazo, algum tipo de âncora cambial, com câmbio fixo ou quase, pode estar a caminho para derrubar a inércia inflacionária. O fim de uma das piores secas da história argentina elevará muito as receitas de exportação, que poderão ser ajudadas com o fim da balbúrdia cambial vigente. Ao se entregar a acordos com Macri, Milei parece disposto a falar sério. Deixou de lado a bobagem de brigar com China (um dos únicos fornecedores de recursos) e Brasil, e aproximou-se de Brasília. Convidou Lula para sua posse e indicou que pretende manter no posto Daniel Scioli, atual embaixador, com o qual o governo brasileiro tem boas relações. Com enormes problemas a defrontar, talvez tenha resolvido enfrentar primeiro os verdadeiros.

Bookmark and Share

Nenhum comentário:

Postar um comentário