terça-feira, 19 de dezembro de 2023

DERROTA DE TEXTO CONSTITUCIONAL EM REFERENDO CHILENO RESTAURA BOM SENSO

Editorial O Globo

País deverá agora apostar em reformas graduais em vez de tentar reescrever uma Constituição do zero

O presidente Gabriel Boric fez bem ao acabar com a iniciativa de redigir uma nova Constituição para o Chile. Nenhuma das tentativas deu certo. As duas propostas levadas aos eleitores foram rechaçadas por maioria ampla. A primeira, em setembro de 2022, refletia os anseios ideológicos da esquerda e perdeu por uma diferença de 24 pontos percentuais (62% a 38%). A segunda, de inclinação mais conservadora, foi derrotada por 11 pontos percentuais em referendo no último domingo (55% a 44%). Com o resultado, continua em vigor a Constituição que data da ditadura de Augusto Pinochet, mas depois foi várias vezes alterada por meios democráticos, garantindo seu sucesso. Melhor assim. Será mais sensato e produtivo reformar uma Carta que tem dado certo do que reescrever tudo do zero.

O Chile é o maior sucesso econômico na América Latina nas últimas décadas. A renda per capita chilena era pouco menor que a brasileira em 1989, ano da redemocratização. Hoje é o dobro. A população abaixo da linha da pobreza caiu de 11% para 0,7%, sem maior desigualdade. A abertura comercial incentivou as empresas competitivas e criou um mercado atraente ao investidor. Apesar dos avanços, as ruas chilenas foram tomadas por protestos em 2019. Muitos se sentiam excluídos e denunciavam a exaustão do modelo. Acossado, o então presidente Sebastián Piñera fechou acordo com a oposição para perguntar em plebiscito se os chilenos gostariam de uma nova Constituição. Em 2020, 79% responderam que sim.

Na escolha dos constituintes, só 43% dos eleitores votaram. Com o país sob influência dos protestos, a maioria dos eleitos pertencia à esquerda, muitos sem experiência política. A Constituinte chegou a cogitar ideias desvairadas, como nacionalizar os recursos naturais ou acabar com a independência do Banco Central. No final, o texto saiu repleto de exageros, nos campos econômico e político (expropriações por valor abaixo do mercado, cerceamento aos Poderes, extensão do direito a greve além do razoável e até reconhecimento de sistemas jurídicos indígenas).

A proposta foi derrotada em referendo em 2022, e os chilenos voltaram a escolher constituintes. Desta vez, a direita levou vantagem, e a nova Carta saiu mais conservadora. O texto previa corte de impostos sobre propriedades, diminuição da influência do Estado nos currículos das escolas, expulsão de migrantes sem documentação e a inclusão da expressão “direito à vida de quem está por nascer”, uma brecha para contestação judicial ao aborto legal. Foi derrotado no último domingo.

Prevaleceu o bom senso: o Chile deverá persistir em reformas graduais para corrigir os pontos problemáticos de sua Constituição, como legislação previdenciária e direitos sociais. Durante 25 anos, o país deu exemplo de equilíbrio ao mundo com alternância de poder em torno de uma agenda consensual. Agora, a coalizão de esquerda liderada por Boric é minoritária, e partidos da oposição têm bloqueado suas iniciativas. Para reformar a Constituição, será primeiro preciso resgatar a capacidade chilena de obter consensos.

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