sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

NÃO É COM 'EU ACHO' QUE SE FAZ A EDUCAÇÃO

José de Souza Martins*, Valor Econômico

Não é de agora que os que pensam a sociedade como um mercado julgam que as ciências sociais roubam tempo às aulas de disciplinas 'economicamente mais importantes’

Educação não é o “eu acho” de tanta gente que não sabe que aula depende de competência profissional e de preparo. O educador é o formador das novas gerações no marco dos valores próprios da sociedade que lhe atribui a missão de educar os jovens. Que os prepare para manter o que deve ser mantido e mudar o que deve ser mudado em nome do historicamente possível e necessário.

Cada vez mais tem gente que não só “acha” o que deve e como deve ser a educação e o que se deve ensinar. Mas há também os que acham que nem todo o necessário deva ser ensinado. Em nome desse acho negativo entendem que certas matérias devem ser excluídas porque o encarecem. O que o encarece é, porém, a pedagogia do palpite.

O assunto surgiu neste curto tempo do novo governo de São Paulo, que tem feito incursões na área da educação de maximizações e de minimizações curriculares que suscitam apreensão entre os que são profissionais da área.

A primeira delas, protagonizada pelo secretário da Educação. Em nome da disseminação de livros eletrônicos, recusou ele os livros físicos produzidos e enviados pelo Ministério da Educação.

Daí decorreu o clamor dos que se deram conta do abismo que assim se abria entre a cultura brasileira do ensino e da leitura e o que era uma tentativa pseudomoderna de inovar sem conexão com a cultura e a tradição brasileiras de ensino e aprendizado. Educação não é obra de engenharia. Só o prédio da escola o é.

Em países como o nosso, educação é e deve ser obra de referência antropológica e sociológica que não só transmita informação sobre diferentes assuntos da área, mas que ressocialize o estudante para a compreensão e superação dos desafios e dificuldades das transformações de sua sociedade.

Outra intervenção preconizada na educação paulista é no sentido de redimensionar matemática e português em relação a outras disciplinas na formação das novas gerações. Como na proposta governista de dela anular as ciências sociais (sociologia e antropologia). O que não é atenuado com a manutenção das ciências humanas (história e geografia), que são outro campo do conhecimento. Estas têm funções cognitivas radicalmente diversas daquelas. Não são intercambiáveis.

Não é de agora que os que pensam a sociedade como um mercado julgam que as ciências sociais roubam tempo às aulas de disciplinas “economicamente mais importantes”, como a matemática. Ora, isso se resolve, matematicamente, instituindo a educação em tempo integral.

Essa proposta redutiva contém o pressuposto, intencional ou não, de que o Brasil ideal, o do PIB, seria uma sociedade da coisificação e da alienação social de seres manipuláveis, que personifiquem o primado do cálculo.

Calcular o que e para quê? Num país em que praticamente metade da população vive em estado de insuficiência alimentar e 33 milhões passam fome, o que pode ser calculado senão o que falta em relação ao demasiado de muitos?

E português para quê? A língua de uma sociedade é para falar e dizer, para expressar o que a consciência sabe sobre o que nessa sociedade falta e o que nela sobra. Mas dizer o que no lugar do que a pobreza e a fome já dizem, no olhar da criança que as padece? Em qual português? O da conversação ritmada pelo silêncio de nossa outra fome, a fome de palavras para dizer o que deve ser dito numa sociedade em que não há quem ouça?

Numa pesquisa que fiz nos sertões do Mato Grosso e do Maranhão, com crianças e adolescentes, em que pedi a algumas que falassem sobre sua vida e pedi a outras que escrevessem sobre o mesmo tema, as que falaram disseram tudo com sotaque nheengatu, ou seja, na língua brasileira E as que escreveram apenas gaguejaram um lamento em textos entrecortados de palavras faltantes. O sensível não lhes era escrevível. Numa escolinha rural, a palmatória sobre o caixote que servia de mesa do professor dizia tudo naquele mundo indizível.

As ciências sociais destinam-se a difundir uma modalidade de conhecimento que ressocializa crítica e defensivamente as gerações que estão chegando a um mundo completamente diferente do mundo de seus pais. O mundo do abismo entre a sociedade tradicional da família e da comunidade e a sociedade pós-moderna do indivíduo solitário do egoísmo consumista. Suprimi-las na formação do estudante é vedar-lhe o direito de saber o que pode socialmente ser e não é e porque não o é.

São elas ciências da esperança, são a autoconsciência científica da realidade social, como as definiu Hans Freyer. Como insurgência interpretativa contra a concepção de que a função das novas gerações é a de se sujeitarem às anomalias do atual sem protagonizar a reinvenção da sociedade como a sociedade justa e democrática do possível.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).

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