Três livros, recém-lançados, mostram como se construíram os superpoderes da Corte. Reação vai do jogo de cena à ameaça real ao papel conferido pela Constituição
No jogo de cena da reação do Supremo Tribunal Federal à proposta de emenda constitucional que limita as decisões monocráticas aprovada pelo Senado, o único ponto em que o protesto dos ministros coincide com a preocupação real que os move é em relação à porteira aberta para outras ofensivas legislativas sobre o STF.
As limitações impostas às monocráticas acrescenta um degrau àquelas votadas pela própria Corte sob a gestão Rosa Weber, notadamente em relação aos pedidos de vista. O que, de fato, afetaria o STF seria a aprovação da emenda que o submete ao Congresso.
Há muitas propostas neste sentido, inclusive de parlamentares da base do governo, mas aquela que mais preocupa é a do deputado Domingos Sávio (PL-MG). O texto prevê que a suspensão de uma decisão do Supremo seja proposta por um mínimo de um terço (171 deputados e 27 senadores). E a submete a quórum constitucional (308 deputados e 49 senadores).
Havia um compromisso de que apenas as decisões que não tivessem sido tomadas por unanimidade seriam objeto de apreciação parlamentar, mas esta cláusula não entrou no texto final que, no fim de setembro, conseguiu as assinaturas necessárias para ser protocolado na Câmara.
Fruto do casamento de interesses entre as bancadas ruralista e evangélica, em função do avanço, no STF, do marco temporal das terras indígenas e da descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, esta PEC tem uma das fundamentações mais rasteiras no conjunto de propostas sobre o tema.
Nem o crítico mais voraz dos superpoderes do Supremo se arvora a defendê-la. Sua apresentação, porém, é fruto de um acúmulo de embates das últimas décadas com a Corte que, no Legislativo, é liderado pelo bolsonarismo, mas já foi encabeçado por petistas.
Seria, praticamente, o desmonte das leis aprovadas a partir de 1988 para regulamentar o dispositivo constitucional que ampliou, para além da Procuradoria Geral da República, os autores de ações de inconstitucionalidade.
Este conjunto de leis configurou um novo perfil para o STF de guardião dos direitos individuais para eixo das decisões de políticas públicas. Para isso, fez-se acompanhar de mecanismos de divulgação de seu protagonismo.
Em “Da lei aos desejos: o agendamento estratégico do STF” (Amanuense, 2023), Grazielle Albuquerque mostra como esse conjunto de leis e o robustecimento da comunicação da Corte, a partir da década de 1990, se retroalimentaram.
Em 1995, a secretaria de comunicação do Supremo tinha três profissionais. Hoje, entre suporte administrativo e jornalistas, são 244 pessoas, 65% dos quais lotados na TV e na Rádio Justiça, que funcionam 24 horas. A estrutura da televisão equivale àquela de uma emissora como o SBT.
A partir de entrevistas com jornalistas, à época na cobertura do Supremo, a autora mostra como jornais e emissoras desmobilizaram os setoristas que cobriam políticas públicas essenciais, nos ministérios da Saúde e da Educação, por exemplo, e reforçaram as equipes no Judiciário. A partir da Corte se cobriam os demais tribunais.
O volume de trabalho só crescia. As leis aprovadas foram fundamentais para a implementação do Plano Real. Entre 1993 e 1999 sucederam-se as leis que regulamentariam as ações que passariam a povoar o léxico dos recursos ao Supremo: ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade), ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental).
Em 2001, a emenda constitucional 35 autorizou a proposição de ação contra parlamentares perante o STF sem autorização prévia do Congresso. E, em 2004, veio a súmula vinculante. Foi a EC 35 que permitiu o afastamento do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, depois que o ex-deputado havia autorizado o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff 20 dias antes.
O então presidente da Corte, o ex-ministro Ricardo Lewandowski, justificou a inclusão da ADPF da Rede na pauta pela “urgência” do julgamento. O professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP, Conrado Hübner Mendes recordaria como Cunha iluminou o jogo de conveniências da pauta: “Se havia urgência, por que levou seis meses?”.
Nenhum pensador do direito se expôs mais, ao longo desse tempo, do que Hübner Mendes para denunciar o processo em curso no Judiciário. A exposição rendeu-lhe ações de agentes do direito. São egressas da PGR (Augusto Aras) e do STF (Kassio Nunes Marques) e até da advocacia. Um conjunto de advogados liderados por Walfrido Warde fez uma interpelação penal contra o professor e recebeu uma “manifestação de solidariedade” do grupo Prerrogativas, que agrega a advocacia antilajavato reunida na campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Nenhuma das ações transitou em julgado, embora todas se encaminhem para dar ganho de causa ao professor. Os artigos que motivaram o embate não constam da compilação de 88 artigos que a Todavia acaba de publicar (“O discreto charme da magistocracia, vícios e disfarces do judiciário brasileiro”), mas o embate resume a independência de seu autor.
Em 2018, o professor varria cortes constitucionais de Estados Unidos, África do Sul, Alemanha, Índia, Espanha, Chile e Argentina para concluir que nenhuma delas franqueia tamanho poder individual de obstrução da pauta.
Levaria cinco anos para a ministra Rosa Weber colocar em pauta mudanças no regimento interno que limitaram os pedidos de vista. Presidente anteriores da Corte, como o ministro Luiz Fux, por exemplo, manifestaram o intento de levar à frente o movimento mas não quiseram abrir mão do poder de brecar pautas de seu interesse.
Foi o caso da liminar sobre o auxílio-moradia dos juízes, que Fux segurou por cinco anos até que tenha sido possível negociá-la por um aumento salarial. A mesma manobra foi aplicada ao “juiz de garantias”, mudança que estabelece um juiz para a instrução do processo e outro para o julgamento, e ainda aos penduricalhos dos juízes do Rio, estado de origem do ministro.
A maioria dos ministros tem sua própria cota de liminares de sua predileção que os impediram de levar adiante mecanismos de autolimitação. Quando Rosa Weber agiu, como agora se vê com a PEC das decisões monocráticas, o caldo já havia entornado.
Colaborou para isso ainda a gangorra das convicções dos ministros. Desde a liminar do ministro Gilmar Mendes impedindo o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de assumir a Casa Civil do governo Dilma Rousseff, que Hübner Mendes chama de a mais lavajatista da história, até o maior golpe no lavajatismo representado pela suspeição do ex-juiz Sergio Moro, comandada pelo mesmo ministro.
Por isso não custou que a união do tribunal na reação ao 8/1, trincheira na qual a democracia brasileira travou sua derradeira batalha, passasse a ser vista com desconfiança quando extrapolou os propósitos a que se destinava.
Ao reconstituir a reação dos ministros em “O tribunal, como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária” (Companhia das Letras, 2023), Felipe Recondo e Luiz Weber recuperam os primórdios do inquérito 4.781, que ficaria conhecido como o “inquérito do fim do mundo”. Ali seria incorporado desde o desmonte do gabinete do ódio, do governo Jair Bolsonaro, até o relatório da CPMI do 8/1 deste ano.
Em entrevistas off-the-record, os autores concluem que o ministro Alexandre de Moraes relutou em aceitar a relatoria do inquérito. Antecipava-se às críticas da academia. Os motivos apenas se acumularam: nasceu de uma interpretação generosa do regimento que permite abertura de inquérito sem provocação apenas para infrações ocorridas na sede da Corte, designou relator sem sorteio, configurou um tribunal vítima, investigador e juiz e teve continuidade mesmo depois do pedido de arquivamento da PGR.
Nenhum deles impediu que o inquérito, iniciado pela suspensão da investigação, pela Receita, de movimentações bancárias das esposas dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, fosse chancelado em plenário por dez a um.
Moraes aparece como o ministro que fornecia o argumento final para as decisões de Rosa Weber e cuja liminar para impedir a posse de Alexandre Ramagen, então diretor da Abin, como diretor da Polícia Federal, foi justificada a “interlocutores” com um “fiz um bem a ele”.
O livro recupera os bastidores da liminar do ministro Nunes Marques que liberou cultos religiosos na Páscoa, exemplo mais vistoso contra a tese de que a PEC das monocráticas teria impedido o enfrentamento, pelo STF, do negacionismo na pandemia.
E, finalmente, descreve Toffoli como o ministro que agiu na “contenção de danos”. Ao chamar o golpe de 1964 de “movimento” o ministro teria emulado Álvaro Ribeiro da Costa, presidente do STF em março de 1964. No livro de Hübner Mendes, Ribeiro da Costa aparece como o ministro que ameaçou entregar as chaves da Corte ao porteiro do Palácio do Planalto se algum ministro fosse cassado. Sob Recondo e Weber, Toffoli aparece como aquele que sugeriu a Bolsonaro viajar para não tumultar a posse de Lula.
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