Ao enfrentar seu teste mais duro — a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 —, as instituições resistiram
A primeira e mais evidente lição a extrair do fatídico 8 de Janeiro de 2023 é que a vigília pela democracia precisa ser permanente. Os riscos estão sempre à espreita, e não deve haver trégua ante a ameaça do golpismo. A segunda lição, corroborada pelos acontecimentos posteriores, é a constatação louvável de que, mesmo enfrentando seu teste mais duro nas quase quatro décadas desde o fim da ditadura militar, a democracia brasileira resistiu. É essencial entender por quê. Para evitar que o pior venha a acontecer de novo e celebrar a vitória da democracia, é preciso conhecer em detalhes o que deu errado — e o que deu certo.
Naquele dia, num dos episódios mais sombrios da História do Brasil, apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos três Poderes em Brasília em atos de vandalismo sem precedentes. Num primeiro momento, poderia parecer apenas uma manifestação fora de controle em razão da negligência da polícia. Não era. Foi uma tentativa de golpe de Estado, planejada e articulada ao longo dos meses que seguiram a derrota de Bolsonaro para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Havia método no caos que tomou a capital da República uma semana depois da posse de Lula. Os golpistas foram convocados pelas redes sociais. Organizadas e financiadas por voluntariosos “patriotas”, caravanas afluíram a Brasília, depois de semanas de acampamento na frente de sedes militares por todo o país. Nos dias anteriores, houve bloqueios de estradas e até uma tentativa frustrada de atentado no aeroporto da capital federal.
As hordas não tiveram dificuldade para avançar na Praça dos Três Poderes e invadir as sedes do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso e do Palácio do Planalto. Em vez de conter a multidão, muitos policiais confraternizavam com invasores e até facilitavam o assalto ao patrimônio público. Enquanto a República era depenada em Brasília, golpistas fechavam estradas e bloqueavam o acesso a refinarias de petróleo noutros estados. No dia seguinte, ainda houve ataque a 11 torres de transmissão de energia.
No momento mais crítico, o então secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, passeava por Miami. Em sua casa, a polícia depois encontrou a minuta de um decreto para instaurar um insólito “estado de defesa” no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e mudar o resultado das eleições. Torres disse que o documento não tinha valor jurídico e seria descartado.
Hoje não há dúvida de que as intenções dos golpistas eram as piores. Em entrevista ao GLOBO, o ministro Alexandre de Moraes, relator dos processos sobre os atos antidemocráticos no STF, revelou que havia planos prevendo não só sua prisão, mas até sua morte. “Eu deveria ser preso e enforcado na Praça dos Três Poderes”, afirmou.
Se o roteiro do golpe fracassou, foi porque Executivo, Legislativo e Judiciário agiram prontamente, de maneira firme e coordenada, para preservar as instituições e a democracia. Chefes dos três Poderes fizeram questão de mostrar união num momento crucial. A imprensa, cumprindo seu papel, manteve a população informada antes e durante os acontecimentos. As Forças Armadas, é preciso reconhecer, também deram sua contribuição para a manutenção da normalidade democrática quando sua cúpula, instada a tomar parte no golpe, recusou em peso envolver-se na trama. Os governadores também não se omitiram. No dia seguinte ao caos, depois do afastamento temporário do governador do Distrito Federal, Lula se reuniu com representantes dos demais estados, incluindo os governadores de oposição. Foi uma cena histórica. Diante dos riscos concretos, viu-se que não é fantasia afirmar que o Brasil tem instituições fortes e operantes. É fato.
O comportamento da classe política brasileira mereceu elogios mundo afora. A direita brasileira, com exceção dos extremistas, deu uma resposta mais robusta à crise do que a americana depois da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. “Todas as principais figuras da direita brasileira aceitaram o resultado na noite da eleição e foram muito rápidas e duras ao denunciar a violência cometida no 8 de Janeiro, (...) muito diferente do que os republicanos fizeram nos Estados Unidos”, afirmou ao GLOBO o cientista político Steven Levitsky, da Universidade Harvard.
Golpistas que participaram do quebra-quebra, financiadores, idealizadores, incentivadores e agentes que se omitiram no 8 de Janeiro estão sob investigação e julgamento nos termos da lei. É o que deve ser feito. Dos mais de 2.100 presos, 66 permanecem detidos. Até agora mais de 30 réus foram julgados e condenados a penas de até 17 anos por crimes como associação criminosa, dano qualificado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado e deterioração de patrimônio tombado. Réus que não participaram de atos violentos foram autorizados a firmar acordos de não persecução penal, com penas mais brandas. O importante é que o julgamento e a punição dos golpistas se deem dentro da lei e dos ritos judiciais. Com amplo direito de defesa, sem revanchismo nem sentimento de vingança. A oposição tem criticado as prisões e as penas, mas Moraes rechaça as críticas. “A Justiça tem que ser igual para todos”, diz. “Se as penas máximas fossem aplicadas em todos os cinco crimes, pegariam mais de 50 anos, mas pegaram 17 (no máximo).”
Para além de punir os executores, é necessário aprofundar as investigações para chegar aos mandantes. Sobretudo, é essencial estabelecer que papel — se algum — tiveram o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras autoridades na tentativa de golpe. Para Moraes, caso fique comprovada a participação de políticos, eles devem ser alijados da vida pública. “Quem não acredita na democracia não deve participar da vida política do país”, afirmou.
Felizmente, o país voltou à normalidade democrática. Lula cumpre o mandato para o qual foi eleito. O Congresso escolhido pelo povo faz seu trabalho. O Judiciário julga com independência. A imprensa exerce seu papel fundamental de informar e fiscalizar. Tudo isso só foi possível porque a sociedade, mesmo cindida nas urnas, rechaçou com firmeza a trama golpista que tentou encerrar o mais longevo período democrático da História do Brasil. A lamentar, nas comemorações previstas para amanhã, apenas a ausência de governadores da oposição, sob as mais diversas alegações. Nada deveria ser mais importante do que celebrar a vitória da democracia no 8 de Janeiro.
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