País está imerso numa crise diplomática provocada por um improviso de Lula
Criticar a fala de Lula não significa aceitar o inaceitável em Gaza ou concordar por um segundo que seja com Netanyahu
A máxima da diplomacia brasileira, por muito tempo, foi a de que “no Itamaraty não se improvisa”. A frase era repetida no Ministério das Relações Exteriores no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, como um alerta de que havia sempre sutilezas a considerar antes de cada ato e cada palavra. O país ainda vivia a etapa final do governo militar, mas a preocupação dos diplomatas de carreira era ter uma política de Estado e não de governo. O objetivo era solucionar controvérsias, ampliar mais os horizontes e refazer laços esgarçados durante o auge do autoritarismo. Ontem, o país se viu imerso numa crise diplomática provocada por um improviso de Lula. Outros ruídos têm nascido de falas impensadas.
Isso provocou um acalorado debate no Brasil, nas últimas horas, sobre se foi erro ou não a declaração de Lula. Como o papel da diplomacia é superar crises e não criá-las, é evidentemente um erro. O Itamaraty está tendo que lidar com uma confusão desnecessária e, ontem, inclusive, o Planalto convocou uma reunião de emergência sobre o assunto. Para evitar novos problemas dessa natureza seria necessário que os assessores de política externa tivessem a coragem de alertar o presidente Lula para os riscos do improviso. Elogios e adulações induzem os governantes a equívocos que, em política externa, podem ser difíceis de consertar.
A crítica ao que está acontecendo em Gaza precisava ser feita. E Lula acertou várias vezes durante a viagem à África na condenação do que está acontecendo com os palestinos. “Ser humanista hoje implica condenar os ataques perpetrados pelo Hamas contra civis israelenses e demandar a libertação imediata de todos os reféns. Ser humanista impõe igualmente o rechaço à resposta desproporcional de Israel que vitimou quase 30 mil palestinos em Gaza, em sua ampla maioria mulheres e crianças, e que provocou o deslocamento forçado de mais de 80% da população”, disse, acertadamente.
Na última fala antes de voltar, durante coletiva na Etiópia, ele disse, primeiro, que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza não existe em nenhum outro momento histórico”. Infelizmente há muitos precedentes históricos recentes de massacres que tornam a afirmação um equívoco factual, como mostrou ontem Guga Chacra, colunista deste jornal.
Claro que o fato de já ter acontecido outros terríveis eventos não torna menos condenável a política do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu para a Faixa de Gaza.
A segunda parte da frase de Lula é a que provocou a tempestade. “Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus”. O Holocausto foi uma página tão dilacerante na História que o mais sensato a fazer é compreender sua dimensão e evitar qualquer comparação, porque é inútil ou provocará sempre muita reação.
É hedionda a guerra conduzida por Benjamin Netanyahu em Gaza, com a matança indiscriminada de civis, sobretudo crianças, como mostrou Dorrit Harazim em sua coluna de domingo. O governante de extrema-direita de Israel estava sendo contestado em seu próprio país e era alvo de manifestações frequentes da população por seu projeto autoritário quando ocorreu o terrível atentado do Hamas. Nada do que acontece agora em Gaza é aceitável. Netanyahu está praticando crimes de guerra. Mas não se deve dar a ele uma plataforma para obter apoios e atacar o líder de outro país não envolvido em guerras como o Brasil. E Netanyahu quis explorar o episódio, escalando ao tentar constranger o embaixador brasileiro Frederico Meyer.
Criticar a fala de Lula não significa aceitar o inaceitável em Gaza ou concordar por um segundo que seja com Netanyahu. Lula tem ambições altas na política externa. Levou o Brasil de volta às grandes negociações globais e tem feito sucessivas viagens internacionais, que ajudam a restaurar a liderança do país. Neste ano de 2024 e no próximo, o governo estará dedicado a exercer a presidência do G20 e a preparar a COP30. Cada palavra deve ter um propósito e ser exatamente na medida e no tom corretos. A diplomacia brasileira, que foi tão atacada e vilipendiada no governo Bolsonaro, é profissional, competente e sabe que o improviso é um caminho pantanoso. Como o Brasil não é uma potência militar, o que tem é apenas o soft power, o poder do convencimento e da costura de alianças. Foi o que eu aprendi com grandes diplomatas brasileiros quanto tive a sorte de ser destacada, na primeira fase da minha vida profissional, para a cobertura diplomática em Brasília.
Nenhum comentário:
Postar um comentário