terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

NEM CULTO À GASTANÇA, NEM TERRORISMO FISCAL

Pedro Cafardo, Valor Econômico

É preciso evitar a polarização ideológica na área da economia, assim como na política

Semanas atrás, quando saiu o resultado do déficit primário do governo central, que atingiu R$ 230,5 bilhões no ano passado, o segundo maior da série histórica, voltaram à rinha econômica cenas de radicalismos.

Terminado o Carnaval, quando o ano efetivamente começa no Brasil, é oportuno voltar a esse tema. A expressão “terrorismo fiscal”, já citada nesta coluna, foi novamente lembrada. A militância fiscalista a repele, naturalmente, com o argumento de que os déficits fiscais aumentam a dívida pública, alimentam a inflação, exigem a manutenção de juros elevados e contraem a economia.

Tudo muito bom, tudo muito bem. Mas o bate-boca que se seguiu deixou claro que, assim como na área política, é preciso evitar a polarização ideológica na área da economia.

O déficit primário de 2023 foi inflado por uma iniciativa do governo, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de honrar pagamentos de precatórios de R$ 93 bilhões, que haviam sido adiados para até 2027 pelo governo anterior. Foram, portanto, gastos não previstos no Orçamento. Além disso, houve pagamentos também extraordinários de R$ 20 bilhões nas compensações aos Estados decorrentes de reduções de alíquotas de ICMS em 2022, durante o período eleitoral. Tudo somado, incluindo outros gastos extraordinários menores, o déficit real teria sido de R$ 109 bilhões, próximo da meta estabelecida de 1% do PIB, segundo cálculos do secretário do Tesouro, Rogério Ceron. Nada que justifique histerias fiscalistas.

A estimativa profética de militâncias radicais é de uma trajetória explosiva da dívida bruta do governo geral (DBGG): atualmente em 74,3% do PIB, ela subiria para 92% em 2032. É certo que os três poderes da República, Executivo, Judiciário e Legislativo, principalmente este último, não demonstram muito interesse em conter gastos supérfluos, aqueles que não estimulam investimentos. Mas, mesmo que a previsão dos militantes se confirme daqui a oito anos, será isso uma tragédia?

Reação quase histérica se deu também quando foi anunciado o programa Nova Indústria Brasil, com gastos previstos de R$ 300 bilhões até 2026. Talvez o saudosismo da era neoliberal tenha levado críticos a considerar impróprias para o Brasil políticas que voltaram a ser adotadas em larga escala pelo mundo. Soa repetitivo lembrar que quase todos os países desenvolvidos ou emergentes estão hoje promovendo políticas industriais. Nos Estados Unidos, o programa é trilionário (em dólares).

Há diferença entre crítica e terrorismo fiscal. Crítica mostra os dois lados da questão. Terrorismo, em qualquer área, é o uso contínuo e sistemático de violência (física ou intelectual) para provocar medo ou alcançar um objetivo político (ou econômico). Em plena pandemia da covid-19, o governo anterior, que já não acreditava na letalidade da doença e em suas consequências econômicas, foi bombardeado por esse comportamento dos profetas da austeridade. A duras penas, a então gestão neoliberal rendeu-se às evidências e criou o auxílio emergencial de minguados R$ 200, sendo depois forçada pelo Congresso a aumentar o valor para R$ 600.

O terrorismo fiscal faz com que haja desleixo na condução de programas sociais, como educação e saúde, tanto na esfera federal quanto em Estados e municípios. Durante a pandemia, por exemplo, um governador, cedendo ao discurso da austeridade, tirou recursos de universidades e de fundações de pesquisas.

Não são razoáveis também discursos que incentivem gastança ou combate ao controle persistente de despesas, obrigatório em qualquer governo. As demonstrações infundadas da militância radical desenvolvimentista (ou progressista) na direção da irresponsabilidade fiscal, como a rotulação de “austericida” atribuída ao esforço da Fazenda em busca do déficit zero em 2024, abalam a credibilidade da política econômica do país.

A moderação no debate fiscal se faz necessária porque as polarizações prejudicam o país. O culto à austeridade radical e incondicional leva a autoridade pública a deixar de diferenciar, por exemplo, despesas correntes de investimentos e a se preocupar mais com a quantidade do que com a qualidade dos gastos. O culto à gastança leva à irresponsabilidade e à insolvência.

Não há, no momento, razões objetivas para discursos apocalípticos de nenhuma das duas facções. Há responsabilidade fiscal, a economia voltou a crescer, a inflação está controlada e dentro da meta, os juros seguem em queda, o desemprego é o menor em nove anos e as contas externas são excepcionais, com superávit comercial anual de quase US$ 100 bilhões e reservas cambiais de US$ 353 bilhões, o que blinda o país de possíveis choques externos.

O debate brasileiro, na verdade, não pode se limitar à questão fiscal, à promoção de crescimento econômico ecologicamente sustentável e à criação de emprego e renda. O Brasil continua sendo um dos piores países em matéria de desigualdade social: metade da riqueza está nas mãos de 1% da população. Neste pós-Carnaval, portanto, é urgente aprofundar a discussão da distribuição da renda. Mas isso é outra história.

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