As conversas entre o ajudante de ordens e generais quatro estrelas como Braga Netto mostram um nivelamento por baixo de funções e linguagem que impedem o respeito à hierarquia militar
Poucas vezes a face humana de uma crise política ficou tão revelada quanto na participação dos militares na comissão que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) montou para acompanhar a votação nas urnas eletrônicas na eleição de 2022. De um lado, o presidente do TSE, ministro do Supremo Luís Roberto Barroso, mostra-se “decepcionado” com a constatação da má-fé com que os militares usaram a chance de colaborar com as autoridades, garantindo uma eleição fora de dúvidas razoáveis sobre sua honestidade.
Do outro, um presidente da República que, se aproveitando do momento, colocou todo o seu esforço para demonstrar que a eleição era manipulada por forças políticas para eleger seu adversário. A fala de Bolsonaro na reunião ministerial em que um golpe de Estado foi discutido — diante do silêncio dos inocentes de sempre — é de uma frieza assustadora.
O que era uma oferta de colaboração foi visto como erro primário de um adversário desprezível pela fraqueza de estender a mão.
— Será que eles esqueceram que eu sou o comandante em chefe das Forças Armadas? — perguntou, incrédulo, aquele que se classificou como “um fodido, um deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado”.
A oposição de modo de pensar entre os dois — um acreditando que o comandante em chefe das Forças Armadas atuaria de boa-fé, o outro zombando do republicanismo ingênuo — mostra bem o terreno em que a disputa era jogada. Pelas investigações em curso, já se sabe que não foi encontrado nenhum indício de fraude em nenhum momento, o que é formalmente lamentado pelo ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid.
O mesmo que também lamentou que os militares estivessem “muito disciplinados” para aceitar comandos golpistas. Os comentários de Cid, por sinal, indicam que naquele período não havia mais hierarquia. As conversas entre o ajudante de ordens e generais quatro estrelas como Braga Netto mostram um nivelamento por baixo de funções e linguagem que impedem o respeito à hierarquia militar.
A começar pela própria filmagem da reunião ministerial, feita por Cid sob ordem de Bolsonaro sem que seus participantes soubessem. Quando um deles perguntou se a reunião era filmada, o próprio presidente disse que não, que autorizara apenas a filmagem de suas intervenções para possível uso posterior. Na verdade, Cid atuava como pau-mandado de Bolsonaro, superando todos aqueles militares acima de sua patente presentes à reunião.
Mas nenhum deles estava mais preocupado com essa questão básica da disciplina militar, pois havia muito aceitavam que o ajudante de ordens comandasse as reuniões. Quando um general manda outro usar as redes sociais para falar mal de seus companheiros, está quebrada a cadeia de comando. Quando usa linguagem de botequim para definir um adversário militar como “petista desde criancinha”, está dada a partida para a anarquia tomar conta das relações militares.
O próprio presidente, “chefe supremo das Forças Armadas”, tratou de quebrar essas regras básicas quando constrangeu militares para que parecessem estar ao seu lado. Foi o que aconteceu com o então ministro da Defesa, Fernando Azevedo, levado por Bolsonaro para sobrevoar uma manifestação contra o Supremo Tribunal Federal (STF). Arrependeu-se depois, mas não formalmente.
Nos Estados Unidos, o então presidente Trump fez o mesmo com o chefe do Estado-Maior, o general Mark Milley, levando-o a participar de uma caminhada próxima à Casa Branca enquanto manifestantes protestavam contra ele. O general, mais tarde, pediu desculpas:
— Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção dos militares na política interna. Eu não deveria ter estado lá.
Por isso a posição do presidente do Superior Tribunal Militar, tenente-brigadeiro do ar Joseli Camelo, defendendo que a Justiça Militar trata de “crimes militares”, e não de “crimes de militares”, é fundamental para retirar do julgamento dos militares envolvidos na sedição a pecha de compromisso corporativo.
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