A esta altura, está claro que tudo o que se interpuser entre o ministro do Supremo e sua autoatribuída missão de reescrever a história da Lava Jato será impiedosamente atropelado
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli mandou que a Procuradoria-Geral da República (PGR) insista numa investigação sobre um suposto conluio entre a ONG Transparência Internacional e a Lava Jato para se apropriar de recursos recuperados de esquemas de corrupção. A ordem de Dias Toffoli se deu poucos dias depois que a ONG incluiu algumas decisões recentes do ministro – sobretudo as que favoreceram empresas envolvidas em escândalos na era petista – na lista dos fatores que ajudaram a piorar a posição do Brasil no Índice de Percepção da Corrupção. Não se conhecem os motivos do ministro Toffoli, que de resto parece profundamente empenhado em reescrever a história de corrupção e desmandos que marcaram a trevosa passagem do PT pelo poder. Fica claro, no entanto, que o ministro não se sente constrangido de nenhuma maneira, nem pelas normas mais comezinhas do Estado Democrático de Direito, em seu empreendimento revisionista – que, como todo bom revisionismo, vem carregado de ânimo vingativo.
Ressalte-se que a acusação contra a Transparência Internacional é antiga e que, em 2020, já havia sido peremptoriamente rejeitada pela PGR por absoluta falta de provas. Anteontem, o ministro ordenou que a PGR retome a investigação da atuação da ONG no Brasil, malgrado nesse ínterim não ter vindo nem a público nem aos autos qualquer novo elemento probatório que consubstanciasse a retomada das investigações. Diante disso, não se pode condenar quem veja na ordem exarada pelo ministro Dias Toffoli à PGR uma espécie de retaliação, o que não se coaduna com a judicatura.
O Índice de Percepção da Corrupção deve ser recebido com muita parcimônia, haja vista que a Transparência Internacional se propõe a capturar as percepções de empresários, acadêmicos e outros especialistas no tema, e não dados objetivos e mensuráveis. Mas aqui não está em questão o conteúdo do relatório, e sim a reação truculenta de um ministro do Supremo a algo que leu e não gostou. Resta esperar que o colegiado da Corte ponha termo a esse empreendimento, mas nada sugere que os pares do ministro Dias Toffoli o farão, pois tudo indica que estamos diante de um fato consumado. A decisão de apagar a Lava Jato da historiografia do País parece que já foi tomada. É muitíssimo improvável que Dias Toffoli esteja tomando as decisões que tem tomado sobre os acordos de leniência firmados no âmbito da Lava Jato desde setembro do ano passado, decisões estas extremamente sensíveis, sem a anuência presumida de uma maioria confortável de seus colegas. É urgente, portanto, que o Supremo se pronuncie o quanto antes sobre esses casos como o tribunal colegiado que é.
Essa cruzada revisionista empreendida por Dias Toffoli, sejam quais forem as suas motivações, é gravíssima por tornar ainda mais espessa a névoa de suspeição que paira sobre a atuação do ministro nos processos que culminaram na suspensão do pagamento de multas bilionárias pactuadas entre as autoridades brasileiras e as empreiteiras apanhadas na Lava Jato corrompendo agentes públicos e enriquecendo à custa do erário. A rigor, é forçoso dizer, o ministro Dias Toffoli nem sequer deveria estar à frente de quaisquer processos envolvendo os interesses do Grupo J&F e da Odebrecht no Supremo. Estivesse o País menos bagunçado moral, ética e institucionalmente, o ministro teria se declarado impedido – ou ao menos sua permanência nesses processos provocaria mais espanto. Dias Toffoli, convém lembrar, foi citado como sendo o “amigo do amigo de meu pai” em manifestação enviada por Marcelo Odebrecht à Polícia Federal, em referência ao presidente Lula da Silva e ao pai do empresário, Emílio Odebrecht. Não bastasse isso, a mulher do ministro, Roberta Rangel, é advogada do Grupo J&F.
O conflito de interesses, como se vê, é clamoroso. Ainda mais escandaloso, porém, é o estado de letargia dos pares do ministro Dias Toffoli no STF, que assistem a esse assalto monocrático a tudo o que há de minimamente ético e republicano no exercício do múnus público em nome de interesses para lá de obscuros.
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