Não chegamos à postura profissional de forças militares de países mais equilibrados democraticamente, mas estamos à frente quando se trata de investigar e punir a sedição
O depoimento de oito horas do ex-comandante do Exército Freire Gomes na Polícia Federal tem tudo para ser definidor dos rumos finais da investigação sobre a tentativa de golpe de janeiro de 2023. A escolha de não se calar no interrogatório, como a maioria dos militares que seguiu uma orientação explícita do ex-presidente Jair Bolsonaro, significa que o general quatro estrelas não tem o que esconder, colocando em evidência que a sua posição antigolpista não foi uma atitude oportunista.
O papel dos militares de alto escalão no plano golpista é um tema delicado que precisa ser destrinchado, pois não pode haver solução completa do caso sem que se constate a culpa de quem deixou que os acampamentos dos revoltosos crescessem no entorno dos principais quartéis. Foi essa decisão que permitiu todo o planejamento da marcha contra a Praça dos Três Poderes, quando claramente o policiamento recebeu instruções para proteger os manifestantes, e não reprimi-los, evidenciando que a intenção era cercar a praça, que deveria ter sido blindada.
O corporativismo militar falou mais alto durante todos os meses em que os acampamentos se transformaram em local protegido, onde o próprio presidente da República mandou recados sediciosos aos acampados. O fato de o general Freire Gomes ter enfrentado o interrogatório da Polícia Federal sem participar de um movimento interno de militares irritados com a investigação dos federais mostra que ele não se comoveu com seus companheiros que embarcaram na aventura golpista, e agora tentam desqualificar as investigações.
O papel cada vez mais importante que a Polícia Federal ganha no combate à corrupção, especialmente ligada ao narcotráfico e às milícias paramilitares, está dando à corporação uma importância que cresce à medida em que os resultados vão aparecendo. Nunca houve na história recente uma série de depoimentos e investigações sobre militares do mais alto escalão que não representasse uma ruptura institucional.
Ao contrário, desta vez está ocorrendo um processo dentro dos trâmites legais, com amplo direito de defesa, sem que os aspectos fundamentais da instituição sejam desrespeitados. O ministro da Defesa, José Múcio, um civil que se impõe pela temperança, continua agindo de maneira profissional no contato com seus subordinados militares, e o comandante do Exército, general Tomás Paiva, mantém-se distante das investigações, que por enquanto tratam de possíveis crimes cometidos por militares em funções de governo.
Muito tem ajudado a manter esse clima republicano as sandices que vão sendo descobertas, revelando que a ganância individual sempre esteve acima da postura profissional do alto comando das Forças Armadas. Como também do bom senso de profissionais formados no que deveria ser uma preparação de alto nível, e tem se mostrado inútil para evitar a burrice de uma desmedida ambição, que leva adultos fardados a seguirem um líder de fancaria.
Não chegamos ainda à postura profissional de forças militares de países mais equilibrados democraticamente, que se colocaram, quando necessário, francamente contra arroubos autoritários. Como nos Estados Unidos, em que o então presidente Trump foi desautorizado pela mais alta autoridade militar quando tentou usar as Forças Armadas na tentativa de impedir a posse do presidente eleito Joe Biden.
Mas estamos aparentemente à frente quando se trata de investigar e punir a sedição, pois o ex-presidente Jair Bolsonaro já está inelegível, e Trump teoricamente ainda pode ser candidato nos Estados Unidos até mesmo se for preso, o que é um paradoxo fatal para a democracia americana. De semelhante, inclusive a fatos recentes de nossa história, a espantosa capacidade de líderes populistas claramente artificiais e caricatos atrair adeptos entre as elites dos países que governam.
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