quarta-feira, 6 de março de 2024

O RISCO DO RÁPIDO AUMENTO DO CRÉDITO A ESTADOS E MUNICÍPIOS

Opinião Valor Econômico

Reivindicações dos Estados encontram receptividade em um governo federal que quer o crescimento a qualquer custo

Sem alarde, o governo Lula tem aumentado rapidamente os empréstimos a Estados e municípios. Em 2023, os créditos para gastos e investimentos cresceu 142%, para R$ 43,3 bilhões, com ou sem garantia do Tesouro Nacional. Esse limite para concessão subirá a R$ 75 bilhões no ano corrente. Estados e municípios, porém, se queixam de queda nas receitas, e Rio, Minas e Rio Grande do Sul, em regime fiscal especial, chegam a ameaçar deixar de pagar o que devem, embora a maioria deles continue elevando as despesas com pessoal. A história pode voltar a se repetir: os entes federados sempre conseguiram dobrar as restrições da União e obter mais recursos. Isso não parece incomodar o governo Lula, que possivelmente espera recompensas políticas com isso.

Durante a pandemia, Estados e municípios receberam uma montanha de dinheiro, além das necessidades, e acumularam superávits expressivos, resultando nos anos seguintes em altos investimentos. Entre 2019 e 2023, as receitas correntes das 27 unidades da federação cresceram 11,6%, a arrecadação do ICMS, 9,1%, as transferências, 40,7%, os investimentos, 105,3%, as despesas com pessoal e encargos, 7,1% e as despesas, 6,8% (Valor, 4 de março). Pelos números, não há sinal de provável escassez de recursos ou penúria fiscal.

Se olhado um recorte apenas entre 2022 e 2023, a situação é peculiar. O governo Bolsonaro aprovara em 2022 a diminuição das tarifas de energia, telecomunicações e combustíveis, as galinhas dos ovos de ouro da arrecadação estadual. Os entes federados teriam direito a compensação em 2024, mas o governo Lula antecipou a reposição das perdas e liberou R$ 27,1 bilhões em 2023. Como a compensação veio apenas no fim do ano, os entes passaram praticamente todo 2023 com perda de receita. Isso não impediu que aumentassem despesas. A receita corrente dos Estados teve queda de 1,8%, a do ICMS, 3,1%, os investimentos, 19,1% em relação a 2022. As despesas com pessoal subiram 5,1%.

A atitude do governo e dos Estados é paradoxal. A relação entre despesas e receitas correntes, que medem a sustentabilidade fiscal dos Estados, piorou no ano passado em 21 das 27 unidades federadas. Este é um motivo claro pelo qual não é recomendável ampliar empréstimos para tomadores cuja capacidade de pagamento piorou claramente, nem mudar os critérios de classificação dos Estados. Da parte dos Estados, não faz o menor sentido aumentar despesas com pessoal quando as receitas são cadentes (embora não muito) e menos ainda pleitear e receber maior quantidade de empréstimos para investimentos quando sua situação financeira piorou.

O jogo do crédito da União a Estados e municípios entra em uma zona de perigo quando se deixa de lado a contabilidade e se consideram as conveniências político-eleitorais. Após o grande acordo de renegociação das dívidas estaduais e municipais de 1999, os entes federados encontraram formas de burlar as restrições, receber mais recursos e obter o direito de não pagá-los, com a anuência do Supremo Tribunal Federal. O Rio de Janeiro, um dos Estados em pior situação, obteve aval do STF para que as garantias dadas aos empréstimos não fossem executadas e as prestações da dívida fossem suspensas. Não foi o único.

De 2016 até o ano passado, a União teve de desembolsar R$ 64,4 bilhões para cobrir valores não pagos por Estados e municípios - apenas R$ 5,6 bilhões foram recuperados. Esses valores certamente vão crescer se não se exigir algum ajuste nas contas estaduais e municipais e se recursos continuarem a fluir livremente para tomadores com receitas em queda e contas em desordem.

O retrato das condições financeiras dos Estados mostra que o pagamento de débitos é secundário em relação ao aumento de gastos, que rendem votos, e dentre eles, a elevação de gastos permanentes, como os com pessoal. Pelos números do Tesouro, em 9 dos 26 Estados e DF, as receitas diminuíram, mas as despesas cresceram. Nos restantes 18, as receitas correntes até foram maiores, mas inferiores ao crescimento das despesas (Valor, 4 de março). Nessas condições, não há ajuste possível: mais recursos para os Estados podem se transformar em investimentos em um primeiro momento, mas em gastos permanentes em seguida, aprofundando os desequilíbrios.

Os Estados não recorreram a medidas que recuperem parte das receitas, como fim de subsídios e isenções concedidas, e sim à elevação de alíquotas do ICMS, feitas por uma dúzia deles. Usaram o artifício de sempre, o feirão de renegociação de dívidas, com grandes cortes em juros e multas e facilidades de pagamento. Isso se tornou um hábito ineficaz. Devedores contumazes têm certeza de que novas renegociações virão e deixam de pagar débitos ao primeiro sinal de aperto.

A economia teve dois anos de crescimento acima das expectativas, embora a arrecadação estadual tenha tido impacto amortecido pela estagnação da indústria de transformação, a maior pagadora de impostos. Governadores e prefeitos, já pouco afeitos a cortar despesas, não se moverão nessa direção em um ano eleitoral. Podem ter percebido também que suas reivindicações encontram receptividade em um governo federal que quer o crescimento a qualquer custo, mesmo que isto retarde a volta da inflação à meta.

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