Encontrar
recursos financeiros e humanos destinados a tentar resolver o problema
angustiante e visível dos menores carentes e abandonados é o desafio inadiável
O Estadão cumpre a
missão que se espera de jornal engajado no debate dos graves problemas sociais.
O editorial A tragédia das crianças pobres (17/4, A3) recoloca em discussão o
drama da infância carente ou abandonada. Deixou de apontar, porém, que não se
trata de fenômeno recente. Arrasta-se há mais de 50 anos, como fruto da
combinação de vários fatores, entre os quais a urbanização, o crescimento da
população, a desagregação familiar.
O livro Geografia da
Fome, de Josué de Castro, teve a primeira edição publicada em 1960. Lançou,
secundando Os Sertões, de Euclides da Cunha, um contundente libelo contra a
miséria. Custou ao autor a cassação dos direitos políticos e o exílio na
França, em 1964.
Em
1975, por iniciativa do deputado Nelson Marchezan, a Câmara dos Deputados
aprovou a criação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a
investigar o problema da criança e do menor carentes do Brasil. O relatório,
publicado em 10/6/1976, é encontrado na internet. Revela a existência, entre
108 milhões de habitantes, dos quais 55,82% vivendo nas cidades, de 13,5
milhões de menores carentes e de 1,9 milhão de abandonados.
Em artigo publicado
no livro A Velha Questão Sindical e Outros Temas (LTr Editora, São Paulo,
1995), registrei, a propósito da CPI, que “o relatório final nos cobriu de
vergonha diante dos povos civilizados”. Escrevi, também, que para enfrentar o
gravíssimo problema o Brasil, mais uma vez, recorria ao método faz de conta:
“Faz de conta que as elites tomaram conhecimento do assunto; faz de conta que
providências urgentes passam a ser adotadas; faz de conta que há uma fundação
nacional incumbida dos menores; faz de conta que fundações estaduais se ocupam
do mesmo problema; faz de conta que basta a aprovação de uma lei para que
carentes e abandonados tenham educação e abrigo; faz de conta que o fracasso
das medidas é devido à velha legislação; faz de conta que nova lei corrigirá as
deficiências atribuídas à antiga; faz de conta que se cria um ministério do
menor, e assim por diante (...)”.
Sensível ao tema, a
Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) determinou a proteção do Estado à
família, à criança, ao adolescente, ao jovem e ao idoso (artigos 226230).
Dispenso-me da reprodução dos dispositivos da Lei Fundamental. Registro, porém,
o texto do artigo 227, para o qual é dever da família “assegurar à criança, ao
adolescente, ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão”.
O Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), Lei n.º 8.069, de 1990, contém 267 artigos e
respectivos parágrafos. Regulamentou os dispositivos constitucionais. Foi, à
época, saudado como esperança para os desafios representados pelos menores
carentes e abandonados. Os resultados, todavia, confirmam a imagem do país do
faz de conta.
O editorial do Estadão
mencionado no início deste artigo contém informações desalentadoras. Apoiado em
estatísticas do IBGE, revela que, “segundo dados de 2022, quase metade das
crianças brasileiras vive em situação da pobreza. São 49,9% das crianças de 0 a
5 anos e 48,5% das crianças de 6 a 14 anos enquadradas na linha de pobreza
definida internacionalmente, isto é, US$ 2,15 por dia”. São aproximadamente
41,1 milhões, dos quais mais da metade vive com fome, não apenas de alimentos,
mas, também, de carinho, de saúde, de educação, de esperanças positivas de
vida.
No coração da cidade
de São Paulo temos imagens dolorosas das condições de abandono de meninas e
meninos. Podem ser vistos sós ou em grupos nas ruas e nas entradas de
restaurantes de luxo, vendendo balas, pedindo ajuda em dinheiro, mendigando um
pouco de comida.
A Constituição
Cidadã, como a denominou o dr. Ulysses Guimarães, em outubro completará 36 anos
de vigência. Não foi escrita por juristas. No plenário, prevaleceram os
retóricos, empenhados em contaminá-la com fortes doses de utopias. Sucessivos
governos ignoraram as advertências contidas no relatório da CPI dos carentes e
abandonados de 1975. Não será demasiado transcrever o que diz o documento, ao
tratar da desagregação familiar: “A causa mais próxima a condicionar a
marginalização do menor é, sem dúvida alguma, a desagregação familiar, em
decorrência da pobreza e da rápida mudança de valores”.
Encontrar recursos
financeiros e humanos destinados a tentar resolver o problema angustiante e
visível dos menores carentes e abandonados é o desafio inadiável da União, dos
Estados, dos municípios. Os dados estão disponíveis para quem se interessar em
consultá-los. Desde a redemocratização, pelo menos uma geração foi perdida. Os
resultados são visíveis a olhos nus. Não há como ignorá-los.
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