No Reino Unido, o processo histórico é expressão da conciliação de tradição e modernidade; aqui, não temos a consciência de que o movimento modernizador resulta da unidade dos contrários
As eleições gerais no Reino Unido e a avassaladora vitória do Partido Trabalhista, com ampla derrota do Partido Conservador, após 14 anos no poder, não me permitem resistir à comparação com o que tem acontecido no Brasil. Aqui, as coisas, historicamente, acontecem pelo avesso. Tivemos um presidente que se supunha rei e dono do poder. Entendia que estava lá para mandar, e não para cumprir um mandato e ser mandado pelo povo.
Somos um país capitalista que funciona ao contrário. Aqui, quem lucra além dos bons costumes vê lucro no prejuízo, progresso no atraso. Como naquele país imaginário de Lewis Carroll, em que quanto mais Alice caminha, mais longe fica do seu destino. Um país que anda para trás.
Interesso-me muito pela importância decisiva que as minúcias e o cotidiano têm na política, na sociedade, na cultura e na economia inglesas. Acompanho, todos os anos, os detalhes rituais da Fala do Trono, símbolo e síntese de um pacto político de opostos, que funciona há séculos.
Aqui, entendemos que o progresso é a destruição de tudo o que já conseguimos. Somos demolidores da memória histórica e das conquistas sociais. País lento e atrasado, mal conseguimos alguma coisa, tratamos de depreciá-la.
Nos últimos anos inviabilizamos conquistas sociais que representam atos de modernização social do nosso capitalismo irracional, impregnado de contradições destrutivas. Os ricos e poderosos são aqui contra “a esquerda”.
Porém, as ideias de esquerda são componentes próprios da preservação da funcionalidade do processo de reprodução do capital. Foi a esquerda que salvou o nosso capitalismo incipiente em 1917.
Salvou-o de vários modos em várias outras ocasiões. Salvou-o no período populista ao aceitar menos do que tinha direito e do que pediam as necessidades sociais dos trabalhadores, ao decifrar e valorizar o significado do processo de reprodução ampliada do capital. Os trabalhadores passaram por privações e fizeram sacrifícios que nenhum empresário fez e nenhum político fez.
Trabalhadores conscientes de que para superar o capitalismo é necessário que ele exista. Para que suas contradições se manifestem como demanda social e política, fundamento de uma práxis emancipadora e transformadora da sociedade inteira. Esse sacrifício faz de quem trabalha sócio e colaborador simbólico do capital.
É bom não esquecer que Lula vem do sindicalismo civilizado de negociação, induzido pelo moderno capitalismo europeu. Ele não é militante de um sindicalismo de demolição do capitalismo, mas de modernização e transformação, um capitalismo que respeita os direitos sociais para que os direitos do capital possam ser respeitados. A sociedade de classes não é sociedade de uma classe só.
No Reino Unido, o processo histórico é expressão da conciliação de tradição e modernidade. Os cidadãos daquele país sabem que uma é condição da outra. Lá se completam e se viabilizam. Aqui, ao contrário, não temos a menor consciência de que o movimento modernizador resulta da unidade dos contrários.
Lá, a tradição humaniza o materialismo do moderno. Desconstrói a economia coisificante por meio dos valores sociais que restituem o homem à sua humanidade, que o liberta do absolutismo da riqueza crescente que, desregulada, se converte no seu contrário, na pobreza crescente.
Nos países ricos também há pobreza, sempre sujeita porém à mediação crítica que pode relativizá-la. Na Europa deste momento, e já faz algum tempo, fala-se na redução da jornada de trabalho sem redução do emprego. A riqueza de todos se traduz em riqueza de tempo livre, de que decorre sua disponibilidade para a cultura, a poesia, a música, a arte.
A conversão de um cotidiano de escravização em cotidiano de libertação, de riqueza espiritual. Lá se reconhece que o trabalho, fundamento da esquerda, liberta a sociedade capitalista do fardo do embrutecimento. O oposto do que vemos aqui no Brasil.
O discurso do novo primeiro-ministro britânico, minutos depois de ter sido convidado pelo rei Charles III a organizar o novo governo do país, foi justamente no sentido de reconhecer no resultado avassalador da eleição uma crítica ao neoliberalismo econômico, fator do desastre social que provocou.
País civilizado, o primeiro-ministro cujo partido foi derrotado renunciou, reconheceu o desencontro entre as decisões do governo e as necessidades do povo, com um “I am sorry”.
O novo primeiro-ministro, sir Keir Starmer, é filho de um ferramenteiro, é vegetariano, trotskista, anglicano e frequenta sinagoga em Londres. Sua esposa é advogada e socióloga. O gato Larry, caçador oficial de ratos da residência do primeiro-ministro, continuará a morar em 10 Downing Street.
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