Os autoritários precisam ser deslegitimados em suas propostas de quebra democrática
O medo de perder a democracia marcou a eleição parlamentar francesa. A derrota da extrema direita foi um alívio similar à vitória numa guerra. Essa angústia democrática se espalha por vários países, em maior ou menor grau e de diferentes formas. Não se trata de dizer que o mundo caminha inexoravelmente para a hegemonia autocrática. Mas também não se pode concluir que o momentâneo sucesso francês contra os autoritários é a tendência global mais provável. O que está em jogo é a compreensão das maneiras mais eficazes de proteger o sistema democrático.
A tendência de crescimento dos países democráticos foi a tônica no mundo do final da década de 1970 até o início do século XXI. A consolidação de modelos efetivamente autoritários na Rússia e na Turquia deram início a um novo ciclo, no qual surgiram vários governos autocráticos, inclusive em lugares que tinham passado por transições democráticas alguns anos antes. No entanto, do mesmo modo que essa onda antidemocrática ganhou espaço internacional, diversas nações conseguiram escapar do autoritarismo ou reverter aquilo que a literatura tem chamado de “democratic backsliding”, ou seja, o retrocesso democrático.
Daí que a pergunta principal hoje diz respeito aos fatores que podem evitar o retrocesso democrático. Parte dos estudos realça que o crescimento de forças políticas autoritárias se relaciona com os sentimentos de grande parte dos cidadãos, descontentes com os seus governos. Há motivos que constroem uma demanda que pode ser explorada por autoritários, embora a cesta de questões seja diferente entre os países, com predomínio ou combinações de questões como imigração, nacionalismo, fracasso econômico e social, insegurança, corrupção e temáticas de ordem moral, especialmente a busca de preservar um modo de vida que em tese estaria sendo destruído pelos valores do mundo moderno.
Entender melhor o peso dessas agendas no mundo e em cada realidade nacional constitui uma tarefa importante para os defensores da democracia. Reduzir situações de desigualdade, melhorar políticas públicas, produzir, enfim, mais riqueza e oportunidades a todos é um elemento essencial na equação de defesa dos regimes democráticos. Na mesma linha, é preciso dialogar e negociar com as agendas de valores, não para impor um único modo de vida ou para restringir direitos, mas para encontrar caminhos menos disruptivos e conflitivos de convivência.
Os defensores da democracia, entretanto, não podem ficar apenas atuando pelo lado da demanda. Muitos dos fatores que levam a crises democráticas, algumas com desfechos autoritários, vinculam-se à forma como a oferta política é organizada, isto é, como as instituições, os governos e os líderes políticos e sociais agem, no sentido dado por trabalhos como o livro de Larry Bartels (“Democracy Erodes from the Top”, Princeton University Press, 2023) e um artigo recente de Thomas Carothers & Brendan Hartnett (“Misunderstanding Democratic Backsliding”, Journal of Democracy, 2024).
Obviamente é preciso criar ambientes mais favoráveis à satisfação dos cidadãos, só que esse processo é bastante complexo, por vezes demorado e sempre mediado por elementos da oferta política de um determinado país.
O caso francês é um bom exemplo disso. As insatisfações populares, algumas movidas por sentimentos autoritários, não vão terminar do dia para a noite após a derrota da extrema direita. Uma demanda problemática para o regime democrático pode ainda permanecer, ser reduzida ou aumentar nos próximos anos. Mas se o nacionalismo extremista e antidemocrático fosse o vencedor no domingo passado, já teriam sido dados passos decisivos para uma via autoritária. O que salvou os franceses desse desfecho trágico foram elementos de oferta política.
E quais são os aspectos mais relevantes que o sistema político-governamental pode oferecer para reduzir as chances de vitória e retrocesso gerado pelo autoritarismo? Quatro elementos parecem ser os mais estratégicos: o desenho das instituições, o papel das lideranças políticas e sociais, a qualidade das políticas públicas e a construção de exemplos que realçam a relevância de se defender a democracia - ou seja, os autoritários precisam ser deslegitimados em suas propostas de quebra democrática.
O primeiro fator diz respeito à forma como são organizadas as instituições. A existência de um segundo turno nas eleições parlamentares francesas foi fundamental para a derrota do partido de Marine Le Pen.
No caso dos Estados Unidos, dado o domínio republicano sobre a Suprema Corte, talvez o maior contrapeso a um possível segundo governo Trump venha a ser o federalismo, dado que vários estados, com grande autonomia e poder, são governados pelos democratas. Assim já foi na época da pandemia da covid-19, quando o descaso do governo nacional foi contrabalançado, em parte, pela ação dos governadores.
A derrota do autoritarismo bolsonarista também tem uma explicação institucionalista, desenvolvida pelo livro “Por que a democracia brasileira não morreu?”, de Marcus Melo e Carlos Pereira (Companhia das Letras). Segundo os autores, o modelo mais consociativo do presidencialismo brasileiro, marcado pela necessidade de se dividir o poder para governar e pela presença de importantes instituições de controle, dificulta bastante qualquer projeto mais autocrático. Assim foi com Collor e se repetiu com Bolsonaro.
O presidente que quiser dar um golpe, seja de que maneira for, terá de convencer ou subjugar as duas Casas do Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal, os órgãos de controle como o TCU e o Ministério Público, os governos subnacionais, particularmente os governos, e as principais organizações da sociedade civil. Esse caleidoscópio institucional é complexo o suficiente para dificultar uma concentração totalmente autocrática do poder, mostraram Marcus Melo e Carlos Pereira.
As instituições são uma variável essencial para barrar projetos autocráticos, mas tal visão não esgota a explicação sobre a sobrevivência das democracias. Isso porque o arcabouço institucional pode ser afetado aos poucos por lideranças que permanecem por muito tempo no governo com um projeto incremental de autoritarismo.
No caso brasileiro, Bolsonaro não conseguiu derrubar e dominar a complexa engenharia institucional do presidencialismo de coalizão. Porém, logrou, num mandato só, enfraquecer ou reduzir bastante o poder de algumas dessas instituições, reduzindo o controle sobre o seu poder e a qualidade da democracia. Se tivesse sido reeleito, ele teria mantido por mais tempo o modelo das traças, que roem por dentro o sistema político, e o final da história poderia ser outro.
O maior limite do institucionalismo estrito, que acredita em instituições que funcionam como robôs com vontade própria, está em dar pouco valor ao papel das lideranças políticas e sociais. Se o STF brasileiro fosse formado pela atual maioria republicana da Suprema Corte americana, provavelmente o desfecho da eleição de 2022 seria diferente.
O peso das lideranças também ficou claro na França na eleição parlamentar: se os partidos de centro e de esquerda não tivessem se unido contra a extrema direita, num processo que envolveu muita abnegação desses atores, a democracia francesa estaria mais capenga hoje.
Atuar para combater as lideranças políticas e sociais autoritárias, bem como para fortalecer líderes democráticos que ocupem posições estratégicas nas instituições ou na sociedade, constitui tarefa central na defesa da democracia. Não é uma empreitada fácil, porque muitas vezes envolve dois grandes desafios: estabelecer pontes entre grupos diferentes que são democratas (algo nada trivial) e evitar que esse apoio aos grupos e líderes pró-democracia não se confunda com a restrição do processo eleitoral competitivo.
Um terceiro elemento da oferta política é a qualidade das políticas públicas. Produzir melhores resultados governamentais aumenta a legitimidade do sistema democrático. Trata-se de uma tarefa que vai além do curto prazo, uma vez que a maioria das boas políticas públicas envolve anos de construção. De todo modo, um caminho mais bem-sucedido na defesa da democracia passa por fornecer respostas mais consistentes tecnicamente, dialogar constantemente com a população e ter uma máquina governamental competente, bem gerida e engajada.
O maior remédio contra líderes e movimentos autoritários está em mostrar que eles não podem atuar contra a democracia. Esse é o quarto ponto da oferta política que tem de estar à disposição na caixa de ferramentas dos democratas. Neste sentido, se Trump tivesse sido punido pela invasão do Capitólio, não só teríamos um autocrata a menos no caminho, mas o debate político americano seria outro hoje.
O Brasil passará por esse teste nos próximos anos. Embora seja importante condenar um presidente que roubou patrimônio público para benefício próprio - o caso das joias - e que falsificou a carteira de vacinação numa pandemia que matou 700 mil brasileiros, o mais relevante para a democracia seria condenar Bolsonaro pela tentativa de golpe no 8 de janeiro. Caso isso não seja feito, haverá ainda um espaço para um projeto autocrático se estabelecer aqui porque os autoritários não terão medo dos democratas.
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