Efeito Kamala esquenta campanha nos EUA e chega ao Brasil
Empolgação em torno dela lembra a vitória de Barack Obama em 2008
Quis o destino que a desistência de Joe Biden de concorrer à reeleição e, na sequência, apontar a afro-asiática Kamala Harris — filha de mãe indiana e pai jamaicano — como substituta na corrida à Casa Branca ocorresse no mês que o Brasil consagrou como Julho das Pretas e na semana em que se comemora o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, 25 de julho. A decisão anunciada na tarde do último domingo ativou o entusiasmo de uma campanha, até então, bastante morna do Partido Democrata.
Horas depois da decisão de Biden, a advogada e ativista negra Stacey Abrams declarou apoio enfático à ex-procuradora penal da Califórnia, ex-senadora, hoje vice-presidente dos Estados Unidos. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Stacey, candidata derrotada em 2018 ao governo da Georgia, liderou movimento pelo voto de jovens e minorias étnicas e fundou a organização Fair Fight (Luta Justa, em tradução livre), para denunciar falhas do sistema eleitoral que resultavam na exclusão desses grupos. O par de iniciativas é reconhecido como responsável pela vitória da chapa Biden-Harris tanto na Georgia quanto no Arizona em 2022. No primeiro estado, o partido não chegava à frente na corrida presidencial desde 1992; no segundo, desde 1996.
Também no domingo, a reunião semanal do movimento Win With Black Women (algo como Vencer com Mulheres Negras) alcançou 44 mil participantes e apurou, ao menos, US$ 1,5 milhão em doações para a campanha de Kamala Harris, ainda a ser referendada na convenção do partido, no mês que vem. Os encontros virtuais por mais mulheres negras na política americana começaram em agosto de 2020, em plena pandemia. Do primeiro, participaram 90 ativistas. O mais recente contou com a deputada Maxine Waters, parlamentar negra da Califórnia, mesmo estado onde Kamala nasceu e fez carreira.
Cinco dias depois do lançamento, com Kamala já tendo discursado nos estados de Delaware, Wisconsin, Indiana e Texas, está evidente que a candidatura da vice, de 59 anos, no lugar do presidente, de 81, emprestou vitalidade a uma campanha que parecia fadada à derrota para o ex-presidente Donald Trump, candidato republicano. Para muitos, a empolgação em torno dela lembra a campanha que fez, em 2008, de Barack Obama o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Kamala já é a primeira mulher e a primeira pessoa de origem afro-asiática a se tornar vice-presidente.
A reviravolta na campanha dos Estados Unidos também foi sentida numa democracia ao Sul do continente que, faz tempo, clama por representatividade. As redes sociais explodiram em posts e fotos compartilhados por nomes da política, personalidades, artistas, influencers. A euforia era não só pelo nome democrata em condições melhores que Joe Biden de disputar com Trump, o presidente que se recusou a reconhecer o resultado das últimas eleições e tentou golpear a democracia. Era também pela perspectiva de uma mulher negra chegar à Casa Branca, com seus pontos fortes (caso da atuação por direitos reprodutivos das mulheres, da instituição do casamento homoafetivo e da feroz oposição a Trump desde a eleição do republicano) e fracos (o encarceramento de negros durante sua gestão na Procuradoria-Geral da Califórnia, a atuação modesta na crise da imigração quando vice).
Biden e Kamala frustraram o projeto de reeleição de Trump, na esteira das manifestações que tomaram os Estados Unidos em 2020 em protesto pelo assassinato de George Floyd, homem negro asfixiado até a morte por um policial branco. A então senadora foi escolhida vice por adicionar diversidade à chapa. Foi a via que pavimentou o comparecimento de negros, latinos e jovens às urnas.
A substituição de Biden por Kamala repercutiu intensamente no Brasil. Produziu no último domingo 129 mil menções e 68 milhões de contas alcançadas nas redes sociais X, Facebook e Instagram, segundo levantamento da Quaest.
— O anúncio da candidatura de Kamala repercutiu positivamente no ambiente digital brasileiro. A possibilidade de os Estados Unidos elegerem pela primeira vez uma mulher negra como presidente é vista com esperança pelos internautas — diz o professor Felipe Nunes, diretor do instituto.
Não faltou quem enxergasse alienação e ingenuidade na viralização em que Nunes viu esperança. Multiplicaram-se ataques e memes debochados apontando a inviabilidade de eleger Kamala, das metrópoles e quebradas do Brasil. Desprezaram a demonstração evidente de desejo de renovação política também nos trópicos. Ou não é também o Brasil o país embolorado das chapas masculinas, brancas, idosas? Não é aqui que o Legislativo, da direita à esquerda, caminha para aprovar anistia pelo descumprimento da distribuição proporcional de recursos públicos para candidaturas negras e de mulheres, estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral?
Um mês antes das eleições nos Estados Unidos, mais de 5.500 municípios brasileiros escolherão prefeitos e vereadores. Tomara as mensagens das redes alcancem as urnas, para que as posições de poder político no Brasil também ganhem diversidade de gênero e raça. Peguem seus títulos. O embarque nas seções eleitorais está próximo.
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