terça-feira, 23 de julho de 2024

KAMALA E O VOTO DOS TRABALHADORES

Rana Foroohar, editora do Financial Times em Nova York / ValorEconômico

Enquanto as políticas trabalhistas dos democratas podem ser mais construtivas, os republicanos se destacam no marketing

Aconteceu. Joe Biden renunciou à corrida presidencial e ratificou Kamala Harris como a nova candidata democrata. As duas medidas são boas decisões: nas últimas semanas, Biden despencou nas pesquisas, enquanto Kamala avançou de forma constante. O caos de uma convenção aberta não é algo que os democratas queiram e acredito que o partido se reunirá rapidamente em torno de Kamala. Mas embora a mudança coloque um fim no suspense, ela ainda não resolve um grande problema para os democratas: como garantir os votos da classe trabalhadora em novembro.

Os eleitores da classe trabalhadora nunca foram o público-alvo de Kamala. Ela é vista mais como uma brilhante ex-advogada e promotora da Califórnia. Enquanto isso, os republicanos continuam cortejando com sucesso os trabalhadores. Na Convenção Nacional Republicana da semana passada, Sean O’Brien, o presidente do sindicato Teamsters, sacudiu a política trabalhista ao fazer jogo duplo em nome de seus membros.

O’Brien foi o primeiro “Teamster” em 121 anos a falar em uma convenção republicana. Foi uma decisão política inteligente que - como salientou em seu discurso - reflete a abordagem do próprio mundo empresarial. “Precisamos chamar a Câmara do Comércio e a Business Roundtable pelo que eles são”, disse ele. “Sindicatos das grandes empresas”. É verdade. Tais organizações podem professar serem apolíticas e a favor do livre mercado, mas na verdade elas, assim como os sindicatos, são grupos de associados que fazem lobby pelos interesses manifestos dos contribuintes.

Muitos líderes empresariais e grupos industriais doam dinheiro para os dois principais partidos políticos. Os líderes trabalhistas, por outro lado, tendem a ser democratas registrados. Isso é verdade mesmo que os seus membros nem sempre votem exclusivamente no Partido Democrata, como vimos muito bem em 2016, quando alguns membros dos sindicatos apoiaram Trump. Embora a maior federação de sindicatos dos EUA, a AFL-CIO, tenha apoiado Biden (e certamente apoiará Kamala), o Teamsters - que representa os trabalhadores dos setores de transporte e logística - não faz parte desse grupo. Ele e alguns outros grupos trabalhistas (e certamente muitos trabalhadores individuais) se veem como agentes livres.

Por que isso? Para começar, nem todos os interesses sindicais são iguais. A abordagem “Build Back Better” (“Reconstruir melhor”) de Biden vem se concentrando muito na reindustrialização, o que é mais benéfico para grupos como o siderúrgico, os trabalhadores do setor elétrico e outros sindicatos industriais.

Mas os Teamsters não fabricam coisas - eles as enviam e manuseiam. Embora possam aplaudir as tarifas em princípio, o bem-estar de seus membros no curto prazo depende mais da habilidade deles de organizar a Amazon do que em produzir veículos elétricos. O mesmo vale para os trabalhadores de áreas como a construção. O trabalho deles não depende de os painéis solares serem fabricados na China, e sim de quantos deles são instalados em telhados americanos.

A verdade é que há muito os sindicatos desempenham um papel nos dois lados do espectro político. Nos últimos anos, parte dos sindicatos da construção civil apoiou os republicanos no Congresso em troca de, por exemplo, seu apoio à Lei Davis-Bacon, que exige que os trabalhadores em projetos públicos assistidos pelo governo federal sejam pagos com um salário justo e benefícios prevalecentes na comunidade onde o projeto está sendo realizado. Em tese, isso evita que as construtoras recrutem, por exemplo, trabalhadores mexicanos sem documentação para trabalhar por salários reduzidos (embora, claro, isso ainda aconteça).

Temas como a Lei Davis-Bacon cruzam os limites políticos e turvam questões de política. Enquanto os democratas de mente correta se preocupam com salários justos para os trabalhadores americanos (assim como muitos conservadores de mente correta), muitos republicanos também se preocupam com a imigração ilegal. Essa preocupação não é racista em si. Mas certamente está sendo usado de maneiras racistas por Trump e pelo Partido Republicano, que usam essas táticas para assustar os trabalhadores cujos empregos podem estar ameaçados.

Enquanto as políticas trabalhistas dos democratas podem ser mais construtivas, os republicanos primam no marketing. É uma ironia sombria que o ataque do líder do Teamsters contra elites tenha sido proferido em uma conferência em nome de um homem que é o retrato perfeito delas

Isso está de acordo com parte da história tensa das relações raciais do próprio movimento operário. O New Deal de Franklin Delano Roosevelt é frequentemente apresentado como um modelo para o tipo de economia do bem-estar social orientada para a produção que os EUA deveriam reconstruir. Isso certamente foi bom para os membros brancos dos sindicatos. Mas os negros e pardos foram sistematicamente excluídos de coisas como as proteções da Previdência Social e do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas, em troca do apoio dos democratas sulistas ao programa.

Não pude deixar de pensar nisso enquanto assistia o discurso de O’Brien na semana passada. Embora a classe trabalhadora da América seja extremamente diversificada, O’Brien parece e soa como os líderes trabalhistas de antigamente. A sua posição na Convenção Nacional Republicana mostra os atritos que ainda existem dentro do movimento trabalhista e do próprio Partido Democrata.

Também pensei sobre essas questões em relação a Kamala. A maioria dos líderes progressistas ainda está, em geral, muito mais interessada em falar sobre raça e identidade, do que sobre classe. Certamente Kamala irá apelar para esses tipos de líderes e os democratas que se importam com essas questões. Mas um motivo do sucesso de Biden em 2020 foi sua habilidade em falar para os eleitores da classe trabalhadora nos Estados indecisos. Esses Estados - Michigan, Wisconsin e Pensilvânia - continuam sendo o lugar onde a corrida será vencida. Isso é evidenciado pelos republicanos que avançam a todo vapor na questão da classe, com Trump escolhendo como companheiro de chapa J.D. Vance - autor de “Era uma vez um sonho” (“Hillbilly Elegy”), seu livro de memórias em que ele conta como foi crescer na América branca da classe trabalhadora.

Deixe-me ser clara. Não acho que Trump se importe de forma alguma com os trabalhadores e não tenho certeza se Vance se importa também. As pessoas trabalhadoras que os apoiam estão votando para se proteger das mudanças, e não se preparando para elas. Mas enquanto as políticas trabalhistas dos democratas podem ser mais construtivas, os republicanos se destacam no marketing. É uma ironia sombria que o ataque de O’Brien contra as elites cuja “lealdade é para com os balanços [das empresas] e os preços das ações” tenha sido proferido em uma conferência em nome de um homem que exemplifica exatamente isso.

A questão para Kamala, supondo que ela será a candidata democrata, é se ela conseguirá convencer mais trabalhadores de que é realmente a pessoa que os protegerá. (Tradução de Mario Zamarian)

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