A violência é tão americana quanto a torta de maçã. Ouvi isso pela primeira vez numa entrevista do escritor Norman Mailer. Não sei se a frase é uma invenção dele ou era um dito popular. Mailer, pessoalmente, era bastante agressivo e se meteu em inúmeras brigas.
Observando a História dos Estados Unidos, vemos confronto em muitos momentos. Com os índios, os mexicanos e, mais tarde, os negros, que não foram apenas escravizados, muitos morreram por tortura, espancamento e assassinato.
No meio do século XIX, os Estados Unidos viveram uma guerra civil violenta. Em sua História, quatro presidentes já foram assassinados, sem contar figuras como Bobby Kennedy e Martin Luther King Jr. O homem que tentou matar Ronald Reagan queria impressionar a atriz Jodie Foster.
Os Estados Unidos fizeram guerra no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque, invadiram países latino-americanos, e a maioria de seu povo é liberal quanto à venda de armas. De vez em quando, há um massacre numa universidade ou escola, reacende-se o debate sobre as armas, mas tudo desaparece com o tempo. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos são bem-sucedidos economicamente, têm grande impulso criativo e uma cultura fascinante. É um lugar para onde muitos vão na esperança de começar nova vida.
Esses elementos podem balizar uma análise do atentado a Trump. Os americanos têm dificuldades de ver a violência em si mesmos e costumam projetá-la nos estrangeiros. Acham sinceramente que os imigrantes determinam a violência, apesar de os números desmentirem. Mas os números são pobres diante da turbulência do inconsciente.
Quando os tiros foram disparados contra Trump, ele virou a cabeça para conferir um gráfico da polícia de fronteiras. Certamente, muitos acham que foi salvo por Deus, e o gráfico da polícia de fronteiras um instrumento divino.
A decisão de fechar os Estados Unidos para imigrantes e expulsar levas de trabalhadores ilegais já era uma proposta de campanha. Pode ganhar agora essa dimensão sobrenatural. Se o braço de Deus se expressa num gráfico de polícia de fronteiras, é fácil demonizar as famílias que tentam entrar no país.
Biden já estava meio enfraquecido por causa de seus problemas cognitivos e motores. Mais cognitivos que motores, pois é possível governar o país numa cadeira de rodas, como fez Roosevelt.
Os tiros contra Trump podem ter selado o destino da campanha. Foram tiros que indiretamente acabaram atingindo a Ucrânia, o esforço contra o aquecimento global e os imigrantes. A Ucrânia depende da ajuda americana, e Trump certamente a cortará para investir num acordo de paz, por meio do qual a Rússia ganhará um grande pedaço do país invadido.
Os imigrantes ilegais podem ser alvo de deportação em massa. Certamente, sobrará para brasileiros. Não há muito o que fazer, exceto dar assistência jurídica.
Quanto ao aquecimento global, de certa forma, todos morreremos um pouco, pois as chances da humanidade encurtarão. Com a presença americana nos acordos internacionais, já ultrapassaríamos os limites de aumento de temperatura previstos para 2030. Sem os americanos, o esforço planetário torna-se muito mais árido.
As previsões não são boas. Serão tempos difíceis, mas já houve outros tempos difíceis, e até quem estudou a melhor maneira de sobreviver neles. Hannah Arendt escreveu um livro com 11 ensaios sobre “Homens em tempos sombrios”. Talvez valha a pena voltar a eles e absorver alguma luz de suas lanternas.
Artigo publicado no jornal O Globo em 22/07/2024
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