Não dá para repudiar ditadura e apoiar Maduro
Sociedade brasileira precisa pactuar regras democráticas que valham para todos
Durante o governo Bolsonaro, centenas de grupos profissionais “pela democracia” se articularam pelo país. Parecia que se formava uma corrente cívica determinada a mostrar ao governo que a sociedade brasileira estava vigilante e que qualquer investida autoritária não seria tolerada. Não se tratava de uma coalizão contra a plataforma de um candidato, mas de uma aliança em defesa da própria democracia. O ano de 2018 parece distante, mas vale lembrar que o espírito original do “Ele não!” era “qualquer um, menos Bolsonaro, o candidato que ameaça a democracia”.
Os diferentes grupos “pela democracia” nasceram com o espírito de frente ampla, mas, aos poucos, foram percebendo que eram fundamentalmente animados por gente de esquerda. Desde a crise eleitoral na Venezuela, na última semana, muitos desses grupos, que têm a democracia no nome, estão conflagrados por disputas entre aqueles que apoiam e os que condenam o regime chavista.
A divisão instaurada nos grupos pró-democracia mostra a perigosa situação em que a sociedade brasileira está, espremida, pela direita, por militantes que acham que os acampamentos nos quartéis, os bloqueios de estradas e a invasão das sedes dos três Poderes não podem ser chamados de tentativa de golpe de Estado e, pela esquerda, pelos que pensam que as eleições na Venezuela transcorreram na mais pura normalidade democrática.
As pesquisas de opinião deveriam nos acalmar, pois têm mostrado um apoio crescente da cidadania brasileira à democracia. Em 1989, logo após a ditadura militar, o apoio era de apenas 43%, segundo o Datafolha. Oscilou um pouco, mas foi crescendo, atingindo o ponto mais alto durante as eleições presidenciais de 2022 (79%) e mantendo-se num patamar razoavelmente elevado desde então (71% em março deste ano). Porém, sob o aparente consenso democrático, existem diferentes e seletivas concepções de democracia.
Uma das tarefas mais urgentes da democracia brasileira é repactuar — ou talvez pactuar — um respeito às regras democráticas mais fundamentais: não apenas a realização de eleições periódicas, mas também a separação e a independência dos Poderes, a liberdade e a pluralidade de imprensa, a liberdade de expressão e organização, a confiança no sistema eleitoral e a aplicação não seletiva das regras.
A sociedade brasileira precisa pactuar regras democráticas que valham para todos, independentemente da orientação política. Se julgamos que o enviesamento político que levou à prisão de Lula constituiu lawfare, temos de aceitar que os excessos cometidos pelo STF nos processos antidemocráticos também são lawfare.
Se acreditamos que os bloqueios de rodovias promovidos pelos caminhoneiros bolsonaristas ultrapassam os limites da liberdade de organização e protesto, então o mesmo princípio deve valer para as ocupações do MST e do MTST.
Se achamos que a defesa do legado da ditadura militar e as conspirações golpistas de Bolsonaro precisam ser reprimidas pelas leis de defesa da democracia, temos de aceitar que essas leis se apliquem também aos partidos e movimentos revolucionários da esquerda.
O fato de os grupos revolucionários de esquerda serem pequenos e não constituírem uma ameaça à ordem democrática permitiu que, por muito tempo, adotássemos uma postura liberal, sem maiores consequências. A ascensão de movimentos de massa da direita radical mostrou que essa atitude tolerante e condescendente só pode ser mantida com uma seletividade na aplicação das regras que não é compatível com um sistema político que valha para todos.
Estamos prontos para fazer esse pacto democrático? O primeiro passo dos democratas de esquerda é reconhecer que regimes que cruzaram a linha que separa a democracia da autocracia precisam ser repudiados. Não dá para dizer “Ditadura nunca mais” e ao mesmo tempo apoiar o chavismo.
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