sábado, 31 de agosto de 2024

MÁTRIA AMADA, BRASIL !

Eduardo Affonso, O Globo

Nosso belo hino, decentemente executado por qualquer banda de música, funciona como kryptonita para cantores populares

O Hino Nacional não dá sorte, coitado. É sonoro, poético, arrebatador, mas ele mesmo não se ajuda. A começar pela letra — hermética, quilométrica, redigida na fronteira entre o hipérbato e a sínquise, eivada de proparoxítonas (é provável que, nesse quesito, só perca para “Construção”, de Chico Buarque, e “O drama de Angélica”, de Alvarenga e Ranchinho).

Suas estrofes são intercambiáveis, sem obedecer a uma sequência lógica — e a maior dúvida da nossa literatura não é se Capitu traiu Bentinho, mas se o “sonho intenso” vem antes ou depois do “amor eterno”. (Repare: sempre haverá uma pausa dramática ao fim do refrão Ó Pátria amada,/Idolatrada,/Salve! Salve!, e nos quedamos em obsequioso silêncio, à espera de ver — ouvir — para onde vai aquela minoria que inventou uma fórmula mnemônica para não se perder.)

Há quem diga que a melodia foi inspirada em obras de Beethoven, Rossini, Liszt, Paganini, Neukomm e do padre José Maurício — mas ninguém sabe ao certo, nesse caso, quem é o ovo, quem é a galinha.

Sabemos que nosso belo hino — magistralmente interpretado por Arthur Moreira Lima, decentemente executado por qualquer banda de música — funciona como kryptonita para cantores populares. Que o digam Vanusa em 2009, Luan Santana em 2011, Carlinhos Brown em 2014 e Ludmilla em 2023. Mais sorte (e talento) tiveram Fafá de Belém, na campanha das Diretas Já, e Paulinho da Viola, na abertura dos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016 — e muitíssimo menos a até agora desconhecida Yurungai (que se autodefine como “criadora sobrevivente, afroamerindígena em trânsito” — expressões bem mais impenetráveis que o lábaro estrelado ou o verde-louro desta flâmula). Coube a ela, desafinadamente, causar estragos tanto ao hino quanto à campanha de Guilherme Boulos — num pleito que pode catapultar ao Planalto, em 2026, um charlatão (eufemismo sugerido pelo meu Departamento de Compliance) que nos fará ter saudades de Sarney, Collor, Lula, Dilma e Bolsonaro, juntos.

Não ocorrerá a Kamala Harris meter um “free persons” em “when freemen shall stand”, nem a Emmanuel Macron neutralizar o “Aux armes, citoyens” com um “citoyen.es” (em francês, o neutro se faz com “.e”). Primeiro, porque têm juízo; segundo, porque Hino Nacional é coisa séria; por fim, porque sabem que isso só ganha voto em eleição de DCE, não nas justas contra Trump ou Le Pen. Pois a campanha de Boulos houve por bem adulterar um dos nossos símbolos pátrios.

Tá legal, eu aceito o argumento: a língua é viva, as mentalidades mudam —e hoje seria inimaginável cantar a letra escrita em 1833 por Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva: Homens bárbaros, gerados/De sangue judaico e mouro/Desenganai-vos: a Pátria/Já não é vosso tesouro. Mesmo a letra oficial foi alterada diversas vezes por seu autor, Osório Duque Estrada.

Mas, se for para não fugir à luta decolonial e antifalocêntrica, é melhor adotar logo a sugestão da jornalista Madeleine Lacsko e wokizar de vez, com o país Deitade eternamente em berço esplêndide/Ao som do mar e à luz da energia limpa/Fulguras, ó Brasil, raiz de Abya Yala,/Iluminade ao sol de poves origináries.

Contribuo com o refrão: Des filhes deste solo és pessoa que pariu (como quer o Ministério da Saúde), Mátria amada, Brasil!. Não soluciona nenhum dos nossos inúmeros problemas, mas pelo menos a rima se salva.

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