sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O DESAFIO DA RECONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL

Fernando Luiz Abrucio, Valor Econômico

É necessário haver um novo equilíbrio de Poderes que vá além do Congresso Nacional

Entre 1993 e 2013, o sistema político brasileiro foi capaz de implementar as melhores ideias da Constituição de 1988 e reformá-la para alcançar um equilíbrio inédito entre democracia, estabilidade econômica e inclusão social. Depois dessa onda positiva, veio a avalanche de quase dez anos de deterioração institucional, aumento da polarização destrutiva e perda da qualidade de várias políticas públicas. O Brasil ainda não saiu por completo dessa crise, e a reconstrução das relações entre os Poderes é um fator essencial para gerar padrões decisórios capazes de colocar o país num novo rumo de desenvolvimento.

O presidencialismo de coalizão construído depois do impeachment de Collor certamente não era perfeito. Muitas crises ocorreram em sua trajetória, com CPIs estridentes e reveladoras, montagem de maiorias parlamentares por vezes a partir de meios ilícitos e, ao final do período, um grande movimento nas ruas pediu maior responsividade do sistema político em relação à sociedade. Inegavelmente havia problemas, só que reformas estavam sendo feitas constantemente (mesmo que fossem incompletas para parte da população) e as políticas públicas eram aperfeiçoadas incrementalmente, com melhoria dos principais indicadores da vida dos cidadãos brasileiros, especialmente os que viviam em situação mais vulnerável.

Muitas das críticas ignoravam o fato de que o modelo institucional brasileiro tem duas qualidades essenciais à estabilidade e ao desenvolvimento do país. A primeira é conseguir lidar com a pluralidade de grupos sociais e dinâmicas territoriais de uma nação federativa bastante complexa. Pode haver algum exagero em sua característica mais consociativa, marcada pela divisão do poder entre vários atores institucionais. Entretanto, se o sistema político fosse mais concentrador e definido pela lógica meramente majoritária - o “vencedor leva tudo” -, o processo decisório poderia ser apenas um jogo de vetos e com poucos controles sobre os governantes. Numa estrutura desse tipo, a polarização atual mais facilmente se transformaria em golpe de Estado ou em completa inviabilização dos governos.

A segunda qualidade dizia respeito à capacidade de produzir negociação entre posições diferentes, presente tanto em espaços institucionais como nas características de muitas lideranças pós-Collor. É interessante notar que mesmo sendo um sistema político com múltiplos atores e controles, sempre houve a possibilidade de saídas institucionais vinculadas a acordos interinstitucionais e/ou entre os atores mais relevantes. A competição entre PSDB e PT foi intensa, mas houve uma enorme continuidade de políticas públicas entre os governos dos dois partidos, fruto de um diálogo entre partidos, sociedade, burocratas e entes federativos.

Essa característica de conversa e acordos dentro do presidencialismo de coalizão foi perdendo a força desde as mobilizações de junho de 2013. Os momentos de lucidez e diálogo se reduziram, embora tenham sido eles que evitaram crises maiores. O país está hoje com Poderes desequilibrados e uma grande parcela dos políticos atuando em prol do aumento do conflito, inclusive sobre assuntos desimportantes, mas que dão ibope para parte do eleitorado - ou likes na internet. Esse jogo centrífugo parece beneficiar cada ator institucional no curto prazo, mas já está levando a derrotas da coletividade - piora na alocação orçamentária, por exemplo - e tende a levar a perda de todos no longo prazo.

A crise recente envolvendo a decisão do ministro Flávio Dino sobre as emendas parlamentares deveria ser um ponto de inflexão nas principais lideranças do país. A questão em si já é um ponto central da reformulação da relação entre os Poderes e um freio de arrumação no presidencialismo de coalizão que se tornou mais fragmentado e menos cooperativo. Gastar bilhões de reais sem transparência, de modo quase nada articulado com as políticas públicas e num nível de despesas que comprime os investimentos públicos federais, não é sustentável política e socialmente.

Em pouco tempo, certamente antes das eleições de 2026, essa montanha de poder vai parir resultados negativos para os congressistas. Primeiro virão os escândalos com emendas Pix e afins. Já há vários indícios de irregularidades e não tardarão para a imprensa e as redes sociais ficarem recheadas de denúncias que só enfraquecem os congressistas atuais. Pesquisas qualitativas já têm medido uma visão cada vez mais negativa sobre o emendismo exacerbado.

Como corolário desse processo, uma nova leva de candidaturas antipolítica aparecerá, somando-se aos já encastelados no bolsonarismo-raiz. Quem está atordoado com a ascensão meteórica de Pablo Marçal deveria temer não a figura em si, mas o que ela representa. Quanto mais a política se parecer para o grande público com um jogo fechado para poucos (e ela não tem sido?), mais oportunidades para outsiders irresponsáveis surgirem.

Na verdade, após a crise de legitimidade causada pela combinação de manifestações de rua, Lava-Jato, impeachment presidencial e crescimento da extrema direita antipolítica, o núcleo principal da classe política, hoje hegemonizado pelo Centrão, fortaleceu as características mais oligárquicas do sistema. Isto é, criou regras que aumentam os recursos em prol da reeleição deles mesmos - a soma de orçamento emendista com Fundos Partidário e eleitoral não encontra paralelo com outras democracias. Como se dizia nos bailes de antigamente, quem está dentro não sai, quem está fora não entra. Esse modelo pode favorecer a reprodução dessa parcela majoritária de parlamentares, que justiça seja feita é mais democrática e responsável que tipos como Nikolas Ferreira e Pablo Marçal. Mas o sucesso dessa engenharia política pode se desgastar muito até 2026.

Nas próximas eleições gerais, a classe política fortalecida por esse modelo mais oligárquico vai enfrentar dois competidores importantes. Um deles é o grupo daqueles que se alinharem organicamente com as políticas públicas do governo federal e/ou dos governos estaduais. A era Bolsonaro caracterizava-se por um governo sem políticas públicas e baseado na guerra cultural. O lulismo sempre esteve acoplado à escolha de programas governamentais que sustentam sua legitimidade, e obviamente uma parte dos congressistas vai tentar se casar com esses veículos de voto. É interessante notar que a mudança no plano nacional gerou impactos nos estados, e se vê um número maior de governadores, de vários espectros, tentando criar modelos setoriais mais estruturados, com possibilidade de gerar benefícios eleitorais por meio dessas políticas específicas.

Políticos do Centrão poderão se beneficiar de modelos baseados em políticas públicas, mas por ora estão preferindo o padrão fragmentado do emendismo, o que é arriscado. O pior é que ainda concorrerão com candidatos que pouco se vinculam ao uso dos recursos do poder estatal. Esses são compostos não só pelos antipolíticos típicos, mas também por gente vinculada a igrejas, grupos econômicos influentes e agentes da segurança pública. É bem provável que o jogo eleitoral de 2026 seja mais difícil para a classe política hoje hegemônica no Congresso Nacional do que foi em 2022, com possibilidade de redução do seu índice de reeleição, caso não mudem parte de sua estratégia.

A reconstrução institucional passa por um novo equilíbrio de Poderes que vai além do Congresso Nacional. No plano da Federação, as relações melhoraram muito desde a posse de Lula e dos novos governadores. Também tem havido um diálogo maior entre os órgãos de controle e os gestores de políticas públicas, mesmo que ainda permaneçam exageros fiscalizatórios. O problema é que o pacto para revigorar o presidencialismo de coalizão deve passar igualmente pela mudança de parte da rota do STF e do Executivo federal.

No caso do Supremo Tribunal Federal, é preciso fortalecer as decisões colegiadas e reduzir a concentração de poderes nas mãos do ministro Alexandre de Moraes. Ele foi o ator mais importante na garantia da democracia contra a tentativa de golpe bolsonarista, e os áudios recém-publicados sobre sua atuação estão bem longe do comportamento ilegal e antirrepublicano captado pela Vaza Jato. Todavia, Moraes e o próprio STF ganhariam muito em legitimidade se os processos concentrados em suas mãos pudessem ter alguma divisão com os outros ministros. Isso seria um sinal positivo para a normalização da situação e para um julgamento mais blindado dos processos envolvendo Bolsonaro.

Quanto ao Executivo, duas coisas são centrais. A primeira é que a reformulação do emendismo vai exigir maior divisão do poder decisório junto ao Centrão. Não se trata necessariamente de fisiologismo, muito menos de corrupção. Não obstante, os parlamentares fora da coligação eleitoral vencedora precisam participar da decisão e dos créditos das políticas públicas lulistas, para revigorar a ideia de coalizão que sustenta a governabilidade. Mas, tão ou mais importante do que isso, a reconstrução institucional vai exigir muito da liderança do presidente Lula, como interlocutor e agregador da ação conjunta dos Poderes. Entre outras razões, por isso que o sistema se chama presidencialismo: porque o líder presidencial deve ser o construtor de caminhos melhores para o país em conjunto com o Legislativo, o Sistema de Justiça e a Federação.
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