A manifestação de consciência social de convergência entre os dois tem sentido em elementos da realidade social que explicam a biografia de ambos
A proximidade que se estabeleceu entre Delfim Netto e Lula, a partir do segundo mandato deste, levanta críticas ao PT por não ter em conta o quanto o primeiro foi personagem da ditadura militar. Lula se desculpou com Delfim pelos ataques que lhe dirigira. Via agora a economia delfiniana com outros olhos. Mas ainda é, para as esquerdas, imperdoável que tenha sido ele um dos signatários do Ato Institucional nº 5, que consolidou no país uma era de terror político.
Delfim nunca negou que o fizera. Na conjuntura que aqui então se vivia, assinaria de novo o Ato 5. Justificou-se no “Roda Viva”, em 2019: “Não tem arrependimento possível sobre alguma coisa que você não tem nenhum controle”.
Porém, é impossível compreender uma herança inesquecível como essa, quando se é prisioneiro do binarismo ideológico de esquerda e direita.
Nessas duas tendências há sutilezas sociais que mediatizam o processo histórico e a elas não se reduzem. Há um conjunto significativo de possibilidades políticas, hoje capturadas pela direita, por omissão da esquerda, que só se realizarão pela mediação da práxis, isto é, na perspectiva da esquerda. Essa é a dimensão sociológica da questão.
A manifestação de consciência social de convergência de Delfim e Lula tem sentido em elementos da realidade social que explicam a biografia de ambos e de outras personagens do momento histórico que ambos simbolizam.
Ao longo de sua vida, Delfim foi um professor, na USP e na política. A importância desse fato em sua biografia pode ser facilmente constatada pela comparação de Delfim com o melancólico desempenho do ministro da Economia de Bolsonaro no espetáculo deplorável da reunião do governo em 22 de abril de 2020. Guedes citou Keynes para invalidar a importância teórica do grande economista inglês, professor da Universidade de Cambridge. E validar sua própria concepção neoliberal da política econômica do governo.
Ministro, Delfim, uma manhã por semana, realizava em seu gabinete um seminário de estudo com seus auxiliares, como se ainda estivesse numa universidade, na sala de aula. Saber para fazer política, no lugar de fazer política sem saber, do bolsonarismo.
O saber como resultado da pluralidade do conhecimento e de seu emprego. Como o demonstrou num artigo na “Folha de S. Paulo”, em 2009, significativamente intitulado “Por que Keynes?”: a “crise que estamos vivendo, produzida pela maléfica ‘autonomização’ do sistema financeiro, encontra a sua melhor explicação em Keynes”. Reconhecia-se keynesiano: criar renda para criar emprego para criar renda e a função do gasto público nessa causação virtuosa. Algo como a causação circular e acumulativa, de Gunnar Myrdal.
Numa palestra na Academia Paulista de Letras, Delfim contou que fora socialista fabiano, o socialismo a ser alcançado por mudanças sociais gradualistas e reformistas. O Estado do bem-estar social, na Inglaterra, foi produto de uma política social de inspiração fabiana.
Há um cenário espacial e social de conjuntura histórica, que explica as condições convergentes das referências secundárias, mas decisivas, de biografias como a de Delfim, Lula e também Serra, personagens do mesmo momento político. Delfim nasceu e cresceu no Cambuci, em 1928. Serra nasceu na Mooca, em 1942. Lula nasceu em 1945, em Pernambuco, e ainda criança migrou com a família para a Vila Carioca, à procura do pai. Naquela época, de um desses bairros podia-se ver o outro, num cenário atravessado pelo rio Tamanduateí.
Região da industrialização, de trabalhadores, católica. De imigrantes de segunda ou terceira geração ou de migrantes vindos para trabalhar nas fábricas da região. Gente motivada pela esperança da ascensão social pelo trabalho, beneficiada pela revolução educacional paulista decorrente da reação à derrota na Revolução de 1932. Da USP às escolas primárias dos bairros e da roça por ela influenciadas, um horizonte comum por diferentes caminhos promovia a superação da escravidão ainda próxima. Estávamos a apenas meio século da Lei Áurea.
Delfim, Serra e Lula são os filhos da estratégia de abolição da escravatura, desenvolvida por Antonio da Silva Prado, do Partido Conservador, do Império, e da família de fazendeiros de café mais rica do Brasil. Promover a imigração subvencionada e oferecer aos fazendeiros, sem custo, a mão de obra livre que os livraria das irracionalidades do trabalho escravo.
Disse ele no Senado, em 1888: “Se o imigrante for morigerado, sóbrio e laborioso, formará pecúlio e terá sua própria terra”. No trabalho nos cafezais, possibilidade de acesso à terra de trabalho. Era a formulação da ideologia brasileira do trabalho livre. Origem de Delfim, Serra e Lula.
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