É esquizofrênica a decisão do STF de
acumular as funções de julgador, investigador e acusador na mesma pessoa
A questão dos ritos na vida humana é central. Agora que estamos
discutindo as ações do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de
Moraes à frente de vários inquéritos, tanto no STF quanto no Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), é bom rever o papel dos ritos. O ministro alega que “seria
esquizofrênico” ele oficiar a si mesmo para tomar alguma decisão, justificando
o fato de ter usado métodos informais para acessar sua equipe no TSE e obter
informações para seus processos no STF.
Mas esquizofrênica, na verdade, é a decisão do STF de acumular as
funções de julgador, investigador e acusador na mesma pessoa. Se houvesse dois
ministros trocando informações, talvez um Alexandre avisasse ao outro Alexandre
que o poder de polícia alegado do TSE é limitado por decisão de um outro
ministro do STF, que foi do TSE. O ministro Edson Fachin disse em 2019 no AI
47738: “O poder de polícia eleitoral, previsto no art. 41, §§ 1º e 2º, da Lei
nº 9.504/1997, está relacionado à propaganda eleitoral e compreende a prática
de atos preventivos ou inibitórios de irregularidades. As medidas que busquem
aplicar sanções ou se distanciem da finalidade preventiva devem ter caráter
jurisdicional e obedecer ao devido processo legal”. Que, nos casos em pauta,
inclui o Ministério Público, só comunicado depois da decisão.
A quebra desse rito custou, portanto, a Moraes
e a seus companheiros de toga que o justificaram uma brecha para a acusação de
que perseguem bolsonaristas. Lembrei-me de comentários sobre os ritos de dois
filósofos destacados de mundos diferentes, que se irmanam. O líder indigenista
Ailton Krenak, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL),
fez questão de seguir os ritos, envergando para começar o fardão, um dos ritos
tradicionais da nossa Academia. Depois de afirmar que “o rito é uma das
maneiras de a gente instituir mundos”, Krenak lembrou o velho ancião tupi do
que chamou “o mais belo verso indigenista da literatura brasileira”, “I-Juca
Pirama”, de Gonçalves Dias: “Em tudo o rito se cumpra”.
O jurista Tércio Sampaio Ferraz fez num seminário da OAB nacional,
de que também participei, uma análise da importância dos ritos na sociedade.
Segundo ele, “rito é, assim, manifestação de cultura. Entre as funções comuns
do rito, está sua atuação na conformação do comportamento social. A criação de
uma comunidade, para além do indivíduo e que lhe sobrevive, depende da vida
autônoma de ritualizações”.
O jurista diz que “todo grupo humano, para ser cimentado em suas
relações socialmente pessoais, depende, para existir, de modos de comportamento
ritualizados”. Mais que simples repetições desprovidas de sentido, esses
rituais têm outra função, “criar um laço solidário para além do espaço e do
tempo do tribunal, com efeitos vinculantes para as partes, para os outros, para
a própria sociedade, devido à sua onipresença, ainda que nem sempre perceptível
conscientemente”.
Sampaio Ferraz chama a atenção para o papel fundamental das
ritualizações jurídicas: “Mediante elas, as normas sociais e os costumes ganham
poder autônomo, como valores de fins sagrados em si mesmos, sem os quais não
haveria vida comum baseada na confiança, não haveria fé nem lei, os juramentos
não poderiam vincular, os acordos não poderiam ser mantidos”.
Hoje, a experiência cotidiana do Direito parece distanciar-se cada
vez mais dessa ritualização, lamenta Sampaio Ferraz: “Com isso observa-se, por
vezes, uma espécie de destruição da confiança nos outros, uma corrosão da
crença na verdade e nos fatos. Tudo vira questão de opinião, que vai atrás das
dimensões políticas (tudo vira ‘arranjo político’), correndo-se o risco de, num
confronto judicial, tratar os outros como objetos, usando-os para conforto de
meros interesses ou até de diversão (o STF transformado em palco da mídia)”.
Ambos falaram muito antes dos fatos que se desenrolam. Só
lembrei-os para ressaltar que pular ritos e improvisar procedimentos são
atitudes que podem prejudicar seres humanos e colocar em risco, sobretudo, a
luta pela democracia, que deve começar pelo cumprimento dos ritos do devido
processo legal do Estado Democrático de Direito.
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