domingo, 15 de setembro de 2024

A BANALIDADE DA LOUCURA

Dorrit Harazim, O Globo

Campanha nos EUA expõe o quanto a loucura ficou banal

A sociedade americana, a começar pela própria imprensa, normalizou a figura de Donald Trump

No fatídico 11 de setembro de 2001, Nova York estava de joelhos. O ataque jihadista havia reduzido a pó as Torres Gêmeas da cidade, e certezas enraizadas haviam perdido qualquer solidez. Menos para Donald Trump. O magnata-celebridade do ramo imobiliário passara a manhã telefonando a emissoras de rádio e TV para se pronunciar.

— Agora o prédio mais alto da cidade é meu, o Wall Street número 40 — gabava-se, alheio à dor, ao horror e ao luto nacional.

Neste 11 de setembro de 2024, lá estava Trump na fileira das autoridades. Para a cerimônia anual em memória dos quase 3 mil mortos no atentado, ele e seu candidato a vice, J.D. Vance, envergavam flamejantes gravatas vermelhas — a cor do Partido Republicano. Parecia normal. Chegou a receber elogios do New York Times pelo “abraço cordial” de cumprimento a Kamala Harris, sua algoz no debate presidencial ocorrido na véspera. Mas esse verniz evaporou-se rapidamente.

Foi prestar homenagem a uma unidade do Corpo de Bombeiros que sofrera baixas horrendas em 2001, acompanhado de Laura Loomer, uma notória conspiracionista dos supremacistas brancos. Incorporada à órbita de Trump há pouco tempo, Loomer é incendiária mesmo para padrões extremistas. “Islamofóbica, com orgulho”, ela inferniza as empresas Uber e Lyft para impedir que motoristas muçulmanos atuem no serviço. Já chamou Kamala de “prostituta usuária de drogas”, incapaz de gerar filhos biológicos “pelos muitos abortos que danificaram seu útero”, e aderiu cedo à doideira de que o atentado do 11 de setembro contou com colaboração do governo americano. De seu receituário consta, também, a fantasia de que as crianças vítimas de atentados a escolas são, na verdade, atores-mirins contratados por democratas.

Por que gastar tanto espaço com figura tão delirante? Porque nada, nestes 50 dias finais de campanha para a Casa Branca, deve ser considerado normal ou irrelevante. O cientista político Brian Klaas, da University College London, cunhou a expressão “banalidade da loucura” para definir o momento político americano. Resume assim o estado da arte da corrida presidencial:

— É uma disputa entre dois candidatos, por ora empatada. Um deles é um criminoso autoritário, acusado de abuso sexual e proibido pela Justiça de Nova York de operar até uma barraca de cachorro-quente por ter cometido fraudes fiscais de grande porte; indiciado pelo furto de documentos secretos do governo e incitador de uma turba violenta para tentar roubar uma eleição; no seu sombrio mundo de fantasia, imigrantes criminosos rondam nas ruas à procura de gatos e cães para devorar. O outro candidato é uma ex-procuradora e política convencional.

Em janeiro, um dos dois assumirá o comando do arsenal mais destruidor da História mundial.

Assim como Hannah Arendt apontara para a conformidade de pessoas comuns diante de atos de barbárie que se tornaram repetitivos e rotineiros, a sociedade americana, a começar pela própria imprensa, normalizou a figura de Trump. Uma coisa é desculpar a criança que tem medo do escuro, outra é aceitar um mundo adulto com medo ou preguiça de ver claro. A isso costuma-se chamar de tragédia, uma vez que a escuridão existe, como ensinou James Baldwin, para que dela se possa sair.

É possível, mas longe de garantido, que o declínio de Donald Trump esteja no horizonte. Aos 78 anos, ele jogou fora um trunfo que a sorte lhe entregou de bandeja e nenhum PAC miliardário poderia pagar: o atentado à bala de 13 de julho na Pensilvânia, de que saiu com punho erguido, orelha ensanguentada e o grito “lute” na boca contraída. Bastaria ater-se ao script formulado por assessores —repetir que fora alvejado para salvar o país e que saíra do episódio disposto a reconstruir a América. Não conseguiu nos comícios que se seguiram.

No debate também não. De início, ainda conseguiu argumentar em tom calmo e coerente. Descarrilou quando Kamala lhe feriu o ego: seus comícios eram tediosos e esvaziados, disse ela. A partir daí, Trump nunca mais encontrou o rumo. Desandou a falar sobre uma Terceira Guerra Mundial, sobre imigrantes que comiam animais de estimação roubados de americanos, falou de hordas de criminosos soltos pelo governo da Venezuela para infestar os Estados Unidos, de médicos que faziam partos de bebês para depois executá-los e outros que tais. Kamala venceu a parada ostentando desdém por aquele ser que se esvaziava a seu lado.

Mas foi apenas um debate. A banalidade da loucura continua de pé. No dia seguinte, antes de se enfileirar para a cerimônia do 11 de Setembro, Trump já estava nas redes sociais seguindo o receituário aprendido ainda jovem com o procurador macarthista Roy Cohn: “Atacar, atacar, atacar, não admitir nada, negar tudo e declarar vitória, sempre”. Isso valerá para o resultado das eleições. Faltam 50 dias.

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