quinta-feira, 12 de setembro de 2024

NOVO TRILEMA RONDA A ECONOMIA MUNDIAL

Dani Rodrik*, Valor Econômico

É preocupante a possibilidade de que talvez seja impossível combater ao mesmo tempo as mudanças climáticas, impulsionar a classe média nas economias desenvolvidas e reduzir a pobreza global

Em 2000, escrevi um artigo sobre o que chamei de “o trilema político da economia mundial”. Minha afirmação era que as formas avançadas de globalização, o Estado-nação e a política de massa não poderiam coexistir. As sociedades se conformariam com (no máximo) duas das três.

Sugeri que, no longo prazo, seria o Estado-nação que cederia. Mas não sem luta. No curto prazo, a consequência mais provável seria que os governos procurariam reafirmar a soberania nacional para enfrentar os desafios distributivos e de governança impostos pela globalização.

Para minha surpresa, o trilema provou ter pernas longas. Meu livro “A globalização foi longe demais?”, publicado uma década depois, elaborou ainda mais a ideia. O conceito do trilema tornou-se útil de entender a reação contra a hiperglobalização, o Brexit, a ascensão da extrema-direita e o futuro da democracia na Europa, entre outras questões.

Ultimamente, outro trilema me preocupa. É a possibilidade de que talvez seja impossível combater ao mesmo tempo as mudanças climáticas, impulsionar a classe média nas economias desenvolvidas e reduzir a pobreza global. De acordo com as trajetórias atuais das políticas econômicas, qualquer combinação de dois objetivos parece ocorrer às custas do terceiro.

Durante as primeiras décadas do pós-guerra, as políticas no mundo desenvolvido e em desenvolvimento enfatizaram o crescimento econômico o e a estabilidade social. As economias avançadas construíram amplos Estados de bem-estar social, mas também se abriram progressivamente para as exportações dos países pobres, desde que as consequências distributivas e sociais fossem administráveis. O resultado foi o crescimento inclusivo nos países ricos, bem como a redução significativa da pobreza nos países em desenvolvimento que estavam adotando as políticas econômicas corretas.

Embora bem-sucedida, essa estratégia contornou os riscos climáticos. Com o tempo, as consequências do crescimento econômico alimentado por combustíveis fósseis ficaram difíceis de ignorar.

A barganha keynesiana-social-democrata do pós-guerra nas economias avançadas foi ainda mais desfeita pelas contradições internas geradas pelo trilema original. À medida que a hiperglobalização substituiu o modelo de Bretton Woods, os mercados de trabalho nas economias avançadas sofreram turbulências maiores, enfraquecendo a classe média e a própria democracia.

Nos EUA, Joe Biden enfrentou essas novas realidades. Ele abriu caminhos ao promover investimentos significativos em energias renováveis e setores verdes. E tem como objetivo deliberado restaurar a classe média, promovendo o poder de negociação da mão de obra, a reorientação da manufatura e a criação de empregos em regiões atingidas pelas importações da China.

Esse novo foco já era esperado há tempos. Mas o que os políticos dos EUA e da Europa veem como uma resposta necessária aos fracassos do neoliberalismo parece, para os países pobres, um ataque às suas perspectivas de desenvolvimento. A recente safra de políticas industriais é geralmente discriminatórias e ameaça impedir a entrada de produtos manufaturados dos países em desenvolvimento.

Os subsídios verdes nos EUA incentivam o uso de insumos nacionais. O mecanismo de precificação de carbono da UE logo exigirá que os exportadores “sujos” paguem tarifas adicionais. Os países pobres acreditam que essas medidas sabotarão seus esforços para reproduzir a industrialização orientada à exportação do Leste Asiático.

A mudança climática é ameaça existencial. Uma classe média grande e estável é a base das democracias liberais. E a redução da pobreza global é um imperativo moral. Seria alarmante se tivéssemos que abandonar qualquer um desses três objetivos

Podemos imaginar uma combinação alternativa de políticas com foco nos países pobres e no clima. Isso implicaria em uma grande transferência de recursos - financeiros e tecnológicos - do Norte para o Sul, a fim de garantir os investimentos necessários em adaptação e mitigação do clima nesse último. Isso também exigiria um acesso significativamente maior nos mercados do Norte a produtos, serviços e trabalhadores dos países pobres do Sul, para aumentar as oportunidades econômicas desses trabalhadores.

Mas aqui, também, o trilema surge com força. Essa abordagem seria contrária ao imperativo de reconstruir a classe média nas economias avançadas. Ela criaria uma concorrência muito maior para os trabalhadores sem diplomas universitários ou profissionais, reduzindo seus salários. Também reduziria os recursos fiscais disponíveis para investimento em seu capital humano e infraestrutura física.

Felizmente, alguns desses conflitos são mais aparentes do que reais. Em especial, os governos das economias avançadas e dos países pobres precisam entender que a maioria dos bons empregos de classe média do futuro terá de vir dos serviços, e não da manufatura. E o crescimento e a redução da pobreza nas economias em desenvolvimento serão impulsionados principalmente pela criação de empregos mais produtivos em seus setores de serviços.

Os setores que absorvem mão de obra, como assistência, varejo, educação e outros, não são comercializáveis em sua maior parte. A promoção desses setores não cria tensões comerciais da mesma forma que nos setores de manufatura. Isso significa que o conflito entre o imperativo da classe média nas economias ricas e o imperativo de crescimento dos países pobres é menos grave do que parece.

Do mesmo modo, será praticamente impossível lidar com as mudanças climáticas sem uma cooperação dos países em desenvolvimento. As emissões desses países ainda estão aumentando, em alguns casos depressa, e sua contribuição para as emissões globais (excluindo a China) logo ultrapassará 50%. Portanto, é do interesse dos países ricos promover políticas de transição que os países pobres considerem como parte de suas estratégias de crescimento, não como um custo.

A mudança climática é uma ameaça existencial. Uma classe média grande e estável é a base das democracias liberais. E a redução da pobreza global é um imperativo moral. Seria alarmante se tivéssemos que abandonar qualquer um desses três objetivos. No entanto, nossa estrutura política atual impõe, de forma implícita, um trilema que parece difícil de superar. Uma transição pós-neoliberal bem-sucedida exige que formulemos políticas econômicas que deixem de lado essas compensações. (Tradução de Fabrício Calado Moreira)

*Dani Rodrik, professor de economia política internacional na Harvard Kennedy School, é presidente da Associação Econômica Internacional.

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