Posição sobre o 8 de Janeiro é a principal disputa política do país
Nem a Justiça nem a imprensa conseguiram comprovar para o público que havia um propósito golpista
A interpretação dos acontecimentos de 8 de janeiro de 2023 tornou-se a principal disputa da política brasileira. A maneira como esse episódio é caracterizado definirá tanto o legado democrático do bolsonarismo quanto a legitimidade da Justiça diante da opinião pública. O 8 de Janeiro ocupa hoje um lugar central, semelhante ao que a Lava-Jato uma vez teve, entre os anos de 2014 e 2018. Aquele que traça as linhas divisórias entre campos políticos e molda as posições. Há, porém, grande assimetria: enquanto a direita reconhece e, de certa forma, impõe essa centralidade, esquerda e centro não parecem perceber que a disputa está em curso.
A posição dos bolsonaristas sobre o 8 de Janeiro foi mudando. Num primeiro momento, quando as imagens da quebradeira ainda estavam frescas na memória coletiva, as pesquisas de opinião mostravam condenação universal aos acontecimentos. Em fevereiro de 2023, segundo a Quaest, 94% dos brasileiros reprovavam a invasão das sedes dos três Poderes. Nesse período, a principal alegação dos bolsonaristas era que infiltrados de esquerda haviam instigado um quebra-quebra. À medida que as investigações avançavam e se evidenciava que militantes bolsonaristas eram responsáveis por alguns dos atos mais execráveis, essa alegação foi sendo abandonada.
Gradualmente, os bolsonaristas adotaram uma nova linha de defesa, alegando que os eventos foram apenas excessos cometidos por uns poucos irresponsáveis. As prisões em massa e as condenações por acusações de golpe de Estado, segundo eles, eram abuso e perseguição da Justiça.
À medida que o tempo passava, a reprovação ao 8 de Janeiro caía. Em dezembro, o índice de rejeição já caíra para 89%. O avanço das investigações e as primeiras condenações não foram capazes de persuadir o público de que os eventos eram mais que vandalismo. Em março de 2024, uma pesquisa do Datafolha revelou que 65% dos brasileiros viam o 8 de Janeiro como ato de vandalismo, enquanto apenas 30% o consideravam tentativa de golpe de Estado. Até entre os eleitores de Lula, 52% acreditavam ser apenas vandalismo. Apesar disso, 63% rejeitavam a ideia de anistia, provavelmente porque entendem que mesmo o vandalismo merece ser condenado com firmeza.
Entre os manifestantes na Avenida Paulista no 7 de Setembro, 83% acreditavam que o 8 de Janeiro foi um protesto essencialmente pacífico, e apenas 37% achavam que houve algum excesso. Apenas 4% pensavamm que foi tentativa de golpe de Estado. Silas Malafaia falou abertamente no carro de som que o ocorrido no 8 de Janeiro foi apenas “baderna”. Bolsonaro afirmou que tudo aquilo foi uma “armação”, que se tratou de uma espécie de “catarse” e que condenações injustas prenderam “jovens mães”, “idosos e idosas” e “chefes de família”, deixando crianças “órfãs de pais vivos”. Ele em seguida defendeu o Projeto de Lei que anistia os presos e condenados pelo 8 de Janeiro. O texto alega que os invasores dos três Poderes “agiram sob um ‘efeito manada’, por não saber se expressar”.
O entendimento de que o 8 de Janeiro foi apenas uma manifestação que saiu do controle já é dominante — e não apenas entre os bolsonaristas. A anistia aos invasores ainda é rejeitada pela maioria, mas, se a postura da imprensa e da Justiça não mudar, ela também se imporá — e por bons motivos.
Nem a Justiça nem a imprensa conseguiram comprovar para o público que havia um propósito golpista na invasão dos três Poderes. A hipótese mais provável — que o plano da liderança dos invasores era provocar uma operação de Garantia da Lei e da Ordem e depois convencer os militares a ficar do seu lado — não foi ainda suficientemente demonstrada. Sabemos factualmente que houve simultaneidade entre a invasão e os bloqueios de rodovia, a derrubada das linhas de transmissão de energia e os bloqueios de acessos às refinarias, mas a coordenação desse plano não foi demonstrada. E, se nada sabemos sobre a dimensão operacional, sabemos menos ainda sobre a concepção desses atos e se envolveram lideranças políticas da direita e o ex-presidente Bolsonaro.
Houve detenções em massa, centenas de mandados de busca e apreensão, quebras de sigilo telemático e fiscal e um ano e meio de investigações. Está mais do que na hora de as evidências, se é que existem, serem detalhadamente apresentadas. Há uma postura muito arrogante da Justiça ao achar que não deve satisfações ao público e que pode seguir no seu próprio ritmo, prolongando indefinidamente as investigações. Mas, se for sábia, ela precisa dar muitas satisfações, porque tem perdido a confiança de parcela dos brasileiros, sob a acusação de tomar partido. Se seguir ignorando a opinião pública, chegará o momento em que a anistia ganhará o país e, se houve mesmo tentativa de golpe, os golpistas sairão impunes.
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